Viagem perdida no tempo
Cena da nova montagem de Hoje é Dia de Rock, que termina temporada hoje no Teatro Ipanema (Foto: Vitor Dias)
Hoje é Dia de Rock eletrizou a juventude na montagem apresentada no Teatro Ipanema no início da década de 1970. A história dos integrantes de uma família que, na segunda metade dos anos 1950, viajam do interior rumo à cidade grande, percurso durante o qual os filhos do casal formado por Pedro e Adélia encontram seus próprios caminhos, reverberou de maneira contundente nos jovens cerceados pelo Brasil da ditadura militar. A nova versão, a cargo do Teatro de Comédia do Paraná, sob a condução de Gabriel Villela, desembarca no mesmo Ipanema, onde encerra temporada hoje, celebrando os 50 anos desse espaço histórico – inaugurado por Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque com uma encenação de O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov.
Essa visita ao texto de José Vicente deixa a impressão de ter sido mais motivada pela comemoração da data redonda que pelo desejo de se comunicar com a plateia de agora. Não significaria transportar a peça para o contexto contemporâneo – operação que tenderia a banalizar a obra original. Talvez o elo pudesse se dar através do contato dos jovens com certas características de décadas passadas – o sentido de utopia, o espírito de comunhão – em falta no instante atual. É improvável que uma montagem volte a alcançar repercussão parecida com a realizada há quase 50 anos, mas a relação que os artistas dessa encenação estabelecem com a dramaturgia soa distanciada, fria, destituída de um olhar específico.
O espetáculo evidencia determinadas falhas de leitura. Valente, filho de Pedro e Adélia que afirma sua homossexualidade, ganha desenho caricato, o que uniformiza sua presença. Adélia surge como uma mãe convencionalmente enérgica, longe do ímpeto libertário da mulher consciente da importância dos filhos alçarem voos independentes. A Índia, um dos elementos que tensiona o realismo da peça, é uma figura apagada em cena. Tanto a Índia quanto Rosário são interpretadas por atores, opção plenamente defensável, apesar de não esclarecida: seria para reforçar o caráter de entidade de uma personagem não-realista?; para chamar atenção para sexualidades desvinculadas de padrões pré-fixados?
Essas deturpações influenciam diretamente nos desempenhos do elenco, que envereda por uma linha equivocada – caso Cesar Mathew, também prejudicado por problema de dicção – ou não conseguem imprimir contornos mais precisos para os personagens – nesse segundo grupo estão Rodrigo Ferrarini, que não transmite o perfil sonhador, nada pragmático, de Pedro, Paulo Marques (Índio), Helena Tezza (Neuzinha) e os encarregados dos demais filhos, Pedro Inoue (Quincas), Nathan Milleo Gualda (Rosário), Matheus Gonzáles (Davi) e Luana Godin (Isabel). Apenas o alcóolatra Seu Guilherme, pequeno papel de Arthur Faustino, desponta com tom ajustado. E apesar da questionável abordagem da personagem pela direção, cabe destacar a atuação de Rosana Stavis como Adélia. A atriz comprova diante do público a vastidão de seus recursos. Evandro Santiago, Flávia Imirene e Kauê Persona, além do músico Marco França, completam o elenco.
A montagem conta com procedimentos do teatro de Gabriel Villela, alguns materializados com brilho. O refinamento artesanal e o rendilhado aparecem aqui em belíssimos figurinos (em que pese a concepção exagerada do de Valente) assinados pelo diretor. A cenografia, outra criação de Villela, traz ao fundo uma tela com um desenho que sugere a extensão de um rio e seus afluentes, imagem que se conecta com a travessia familiar e a partida de cada um dos filhos. O encenador ressalta a sua identidade cultural e afetiva por meio da inclusão de músicas de Milton Nascimento.
Ainda que próximo do universo de José Vicente, revelado anteriormente através de um dos seus espetáculos, Ventania, Gabriel Villela não se debruçou sobre Hoje é Dia de Rock com a habitual inspiração.