Uma senhora figurinista
Kalma Murtinho, homenageada pelo Prêmio Shell em 2007 (Foto: Acervo Prêmio Shell)
A história do teatro brasileiro na efervescente segunda metade do século XX pode ser contada através da trajetória da figurinista Kalma Murtinho, que morreu no último dia 20, aos 93 anos.
Kalma começou seu percurso artístico ao lado de Maria Clara Machado, no então recém-fundado Tablado do início da década de 50, inicialmente se revezando nas funções de atriz e figurinista. “Maria Clara era minha amiga de infância. Fomos bandeirantes juntas. Interpretei a primeira Mãe Fantasma”, recorda Kalma, referindo-se à personagem de Pluft, o Fantasminha, em entrevista realizada por ocasião da justa homenagem que recebeu na edição de 2007 do Prêmio Shell. “Mas ficava muito cansada em acumular os dois trabalhos. Percebi que precisavam mais de mim no lado dos figurinos. Os anos foram passando e não senti falta do trabalho de atriz porque encontrei uma maneira de me exprimir por meio dos figurinos”, afirma Kalma.
O primeiro trabalho profissional de Kalma como figurinista ocorreu a partir de um convite de Gianni Ratto, que dirigia a montagem de Nossa Vida com Papai (1957), no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “Nós estávamos fazendo O Macaco da Vizinha (1956) no Tablado. Ratto foi assistir e me convidou para integrar a equipe do espetáculo do TBC. Lembro que tinha ido visitar uma irmã no Peru e, no dia em que cheguei de volta em casa, recebi um telefonema dele pedindo para que fosse imediatamente para São Paulo. Larguei as malas e fui”, conta.
Kalma Murtinho daria continuidade à parceria com Gianni Ratto em outras ocasiões, como nas montagens de O Amante de Madame Vidal (1973) e Com a Pulga atrás da Orelha (1984) – esta última, um dos grandes sucessos da carreira da atriz Fernanda Montenegro. Além de Fernanda – com quem voltou a trabalhar em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1982), uma das mais importantes encenações do Teatro dos 4 -, vestiu outras grandes atrizes brasileiras, como Bibi Ferreira, em Piaf (1983), espetáculo assinado por Flavio Rangel, diretor que também requisitou os figurinos de Kalma em Pippin (1974), Amadeus (1982), Freud – No Distante País Além da Alma (1984) e Cyrano de Bergerac (1985).
A paixão pelo trabalho foi transmitida para a filha, Rita Murtinho, também figurinista. Há pouco tempo, Kalma foi contemplada com um momento emocionante ao entregar o Prêmio Eletrobrás de melhor figurino para Rita (que, porém, não pode estar presente na ocasião) por sua concepção para a montagem do Grupo Armazém de Toda Nudez será Castigada (2005). “Mãe e filha não podem trabalhar juntas. Temos direções diferentes na carreira, mas ela é uma profissional competentíssima”, elogia Kalma, que vem mantendo inquebrantável paixão pelo teatro. Na televisão, por exemplo, fez figurinos para poucas novelas: Saramandaia (1976), a que mais gostou, O Astro (1977), Espelho Mágico (1977) e o começo de Dancin’ Days (1978).
Nos últimos anos, Kalma assinou os figurinos das montagens de Porcelana Fina (2006), A Ratoeira (2006) e Um Marido Ideal (2007). “A Ratoeira pede um figurino absolutamente realista. Os personagens são ingleses de classe-média numa cidade nevada. Entrei num brechó e pedi pesados casacos de inverno. Encontrei uns dez maravilhosos. O figurino de Tonico Pereira precisava exprimir que o personagem é um homem que se cuida. A juíza de Débora Duarte deveria aparecer de tailleur, mas percebi que ela ficaria bem de turbante, como, de fato, aconteceu. Os atores devem sempre ser respeitados”, destaca Kalma.