Uma experiência imersiva
Há uma estrutura de suposta repetição que atravessa a dramaturgia de Samuel Beckett. Tanto nas peças curtas quanto nas de maior fôlego, seus personagens parecem aprisionados numa circularidade, numa espécie de movimento que tem seu fim anunciado, mas que não termina de fato. Não se trata exatamente de repetição, na medida em que ocorrem mudanças na continuidade ou retomada das ações. A questão do tempo surge realçada, em especial, numa proposta como a de Vozes do silêncio – Filme não Filme, concebida por Fabio Ferreira e interpretada por Carolina Virgüez, voltada para a interface entre teatro e cinema.
O trabalho reúne três peças curtas de Beckett: Eu Não, Passos e Cadeira de Balanço (traduzido como Cadência). Em Eu Não, uma boca, em movimento frenético, não consegue parar de falar, como se as palavras que saem de seus lábios não decorressem do pensamento. Fabio Ferreira preenche a tela com recortes de boca – um maior, ao centro, e outros menores, ao redor, nas laterais. Não há “apenas” a delimitação de uma boca, mas várias imagens de uma mesma boca. Essa projeção pode transmitir uma sensação fantasmagórica, como se não houvesse alguém falando no momento da apresentação, somado ao fato de o próprio título apontar para uma negação da identidade. Essa identidade invisível, oculta, é destacada, de modo diverso, nas breves referências a A Última Gravação de Krapp inseridas no meio de Eu Não.
A desconexão com o instante imediato também se insinua em Cadeira de Balanço através do recurso da voz em off. Se na peça anterior a boca gesticula sem parar e a voz é quase incessante, aqui impera a voz em off, uma voz de outro tempo, hipnótica como os pêndulos que balançam em sintonia com o movimento cadenciado da atriz. O público se depara com uma mistura de tempos. O vínculo com o passado é valorizado pela imagem dos escombros de uma casa, onde a “ação” acontece, e pelo elo com o cinema, arte que exibe à plateia a realização concluída, evidenciado na alteração de ângulo de visão em relação à cena. A imagem, portanto, é determinada pelo posicionamento da câmera e não (só) pelo olhar do espectador. Há ainda um presente estendido, resultado de um movimento que anuncia constantemente o seu fim (“hora de parar”), que, porém, não chega, e um presente instantâneo reforçado pela palavra “agora”. O texto aparentemente dito de maneira automática em Eu Não e num vagaroso torpor em Cadeira de Balanço contrasta com momentos em que o sentido de urgência se impõe por meio de questionamentos e interjeições (“O que?, “Quem?”, “Não”, em Eu Não, e “Agora” em Cadeira de Balanço).
A terceira peça, Passos, sublinha a articulação temporal embutida na dramaturgia de Beckett e na conjugação entre teatro e cinema, potencializando, contudo, a natureza sensorial inerente a essa experiência. As imagens de pedras e tijolos e o som de cascalho ao caminhar constituem uma partitura que se amalgama à expressão do texto. A proximidade com as artes plásticas é clara, favorecida pelo entrosamento entre as contribuições que integram Vozes do Silêncio – entre elas, a ambientação cenográfica de Fabio Ferreira, a iluminação de Renato Machado (é marcante o rasgo de luz em Cadeira de Balanço), os figurinos de Luiza Marcier. A conjugação entre a palavra e a concepção estética desponta na interpretação de Carolina Virgüez, que, em cada peça, imprime distintos registros vocais – imponente em Eu Não, inebriante em Cadeira de Balanço e suave em Passos – e controla o corpo com precisão.
A importância do tempo em Vozes do Silêncio pede o comprometimento do espectador, convidado a se distanciar do vapt-vupt tão característico dos dias de hoje e aderir a uma proposta imersiva.
Trabalho apresentado, até o próximo dia 25, na plataforma Zoom, com retirada de ingressos gratuitos pela Sympla (www.sympla.com.br/produtor/vozesdosilencio)