Um musical distante de formatos padronizados
Cena de Suassuna – O Auto do Reino do Sol (Foto: Marcelo Rodolfo)
A afirmação da brasilidade, o investimento numa dramaturgia distante da vertente biográfica e a concepção de trilhas sonoras originais vêm atravessando os espetáculos da Cia. Barca dos Corações Partidos, que segue em cartaz, no Teatro Riachuelo, com seu novo trabalho, Suassuna – O Auto do Reino do Sol.
O grupo mergulhou no universo do escritor por meio do texto de Braulio Tavares, que aborda a jornada de uma trupe de circo-teatro por um sertão selvagem dominado pela disputa entre famílias rivais que afeta diretamente um jovem casal apaixonado, Lucas e Iracema. Mesmo que os planos do sertão e do cotidiano da companhia de circo-teatro nem sempre se conectem de maneira orgânica – a ligação acontece de forma mais concreta no momento do ingresso do casal dentro da trupe, mas depois se dissolve –, o texto não se limita a realçar referências à obra de Suassuna (por mais que essas se façam presentes) e evidencia uma postura louvável na busca por uma dramaturgia autoral para o musical.
A resistência a um certo padrão de musical também pode ser detectada no ritmo menos esfuziante, sustentado pelo diretor Luiz Carlos Vasconcelos ao longo da apresentação, e na iluminação crepuscular de Renato Machado. A luz preenche o espaço, que conta com cenografia econômica (de Sérgio Marimba), composta pela carroça por meio da qual os artistas transitam e pela lona do circo, que não chega a se tornar visualmente expressiva no palco. Mas o espetáculo esbanja criatividade nos figurinos de Kika Lopes e Heloisa Stockler. A junção imprevisível de estampas e o somatório de cores e tecidos não geram a impressão de mero acúmulo. Elemento fundamental, a música, resultado da parceria entre Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho, comprova a qualidade dessa homenagem a Suassuna.
Há ainda especificidade em relação aos atores. Um espetáculo como Suassuna – O Auto do Reino do Sol é estruturado de modo a valorizar o conjunto, as marcações coletivas. De fato, o elenco (Adrén Alves, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, Chris Mourão, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Pedro Aune, Renato Luciano, Rebeca Jamir e Ricca Barros) demonstra entrosamento. Mas não há como deixar de destacar as criações de Alves nas duas personagens femininas, Sultana, que comanda o circo-teatro, e Eufrásia, representante de uma aristocracia arraigada. O ator não sucumbe ao peso da caracterização (cabe chamar atenção para o visagismo de Uirandê de Holanda e Angélica Ribeiro) e constrói figuras palpáveis que não se reduzem a exercícios de composição exteriorizada.
Apesar das particularidades de cada encenação – em Auê, apresentada simultaneamente no Teatro Riachuelo, há uma proposta de dramaturgia através da música –, Suassuna – O Auto do Reino do Sol sinaliza uma continuidade coerente na linha de trabalho da Barca dos Corações Partidos.