Trágico círculo vicioso
Jaime Leibovitch e Bruce Gomlevsky em Festa de Família (Foto: Tatiana Farache)
À frente da Cia. Teatro Esplendor, Bruce Gomlevsky vem realizando um trabalho importante ao investir em montagens de textos contundentes, tanto de autores consagrados quanto de outros pouco difundidos no Brasil, numa época em que a palavra nem sempre é valorizada. As recentes escolhas de Bruce comprovam determinação em descortinar painéis de famílias emocionalmente arruinadas, a julgar pelas encenações de A Volta ao Lar, de Harold Pinter, O Homem Travesseiro, de Martin McDonagh, e, agora, de Festa de Família e O Funeral, ambos de Thomas Vinterberg (o primeiro texto escrito em parceria com Mogens Rukov e Bo Hr. Hansen e o segundo, com Rukov), que fazem hoje suas últimas apresentações no Mezanino do Espaço Sesc.
Encenado pelo próprio Bruce, em 2009, a partir de adaptação do filme de Vinterberg representativo do movimento Dogma 95, Festa de Família é centrado numa revelação bombástica feita por Christian durante o jantar comemorativo dos 60 anos do pai, Helge, algo que modifica a estrutura de funcionamento de toda a relação familiar. Em O Funeral, o público reencontra integrantes da mesma família, que se reúnem dez anos depois, na ocasião do funeral de Helge, e são desestabilizados por um acontecimento – fato novo, mas um desdobramento da tragédia de décadas atrás. A possibilidade de assistir em sequência às montagens dos dois textos evidencia que os autores procuraram destacar a tendência do ser humano de repetir com os outros as suas experiências traumáticas.
São duas obras de qualidade, cabendo apenas fazer restrições específicas. Em Festa de Família, a passagem do café da manhã, ocorrida após as sucessivas catarses da noite anterior, soa idealizada, na medida em que os vínculos entre os personagens já parecem bem resolvidos, como se não houvesse necessidade de um tempo maior para administrar tudo o que acabou de ser trazido à tona. O desfecho de O Funeral, inclusive, mostra que ainda haveria muito a elaborar. No entanto, é preciso chegar até lá para ter a sensação de se estar diante de um quadro familiar verossímil. Nesse segundo texto, o problema reside na produção de um mistério de previsível elucidação.
Bruce Gomlevsky e Raul Guaraná em O Funeral (Foto: Tatiana Farache)
Os dois espetáculos, dirigidos por Bruce Gomlevsky, sobressaem pelo modo como inserem o público dentro de dadas configurações espaciais (em ambos os casos, de Bel Lobo, função assumida com Bruce em O Funeral). Em Festa de Família, parte da plateia é convidada a se sentar à mesa de jantar juntamente com os personagens/atores. A outra acompanha a ação nas laterais do espaço, dividida em dois blocos, um disposto de frente para o outro, como em O Funeral – apesar de, nessa encenação, os espectadores ficarem em espaço ainda mais condensado. Há outra diferença: na primeira montagem, parte do público envolve a cena; na segunda é envolvido por ela em diversos momentos. A localização dos espaços também difere. Em Festa de Família, boa parte da ação se passa na sala de jantar. Ao mesmo tempo em que se preocupa em reconstitui-la, Bruce se liberta do formato realista ao fazer menção a outros ambientes (os quartos da casa, por exemplo) no espaço vazio do meio da grande mesa e ao suprimir a comida dos pratos. Em O Funeral, a localização é menos precisa. E muito do que ocorre não é visto pelo espectador, que vai sendo informado pelos personagens.
Dotadas de alta carga dramática, as montagens realçam o potencial dos textos para eletrizar a plateia. Em Festa de Família, a iluminação (criação original de Maneco Quinderé adaptada para o novo espaço por Elisa Tandeta) não segue o caminho mais fácil da luz aberta durante o jantar e potencializa penumbras. Uma opção coerente com um texto que aborda a exposição de material aterrorizante até então interditado. As canções infantis entoadas ao longo da comemoração (trilha original de Marcelo Alonso Neves) contrastam, de maneira incômoda, com o teor sinistro das revelações e espelham o crescente descontrole dos personagens, cada vez mais desmascarados em suas omissões e em seus preconceitos arraigados. Contudo, em O Funeral existe um problema de concepção para as cenas de sonho, nas quais os personagens evocam o falecido Helge. Logo na entrada do teatro, o público já se depara com a figura dele num caixão. Portanto, não há sentido em criar uma atmosfera especial, de irrealidade – através da iluminação, da música e do registro interpretativo – para essas passagens.
Tanto os atores que participam de uma das montagens (Thiago Guerrante, Glauce Guima, Ricardo Ventura, Felipe Cabral, Luiz Felipe Lucas, Sofia Viamonte, Silvio Matos, Thalita Godoi e Raul Guaraná) quanto os que surgem em ambas (Bruce Gomlevsky, Carolina Chalita, Gustavo Damasceno, Jaime Leibovitch, João Lucas Romero, Luiza Maldonado e Xuxa Lopes) demonstram sintonia com a proposta do trabalho. Eventuais desníveis não ameaçam o bom resultado. As encenações de Festa de Família e O Funeral compõem um projeto bastante relevante no panorama atual do teatro no Rio de Janeiro.