Tragédias dos esquecidos
Caranguejo Overdrive, encenação d’Aquela Cia. que ganhará nova temporada (Foto: Elisa Mendes)
Os espaços são definidos com precisão e, ao mesmo tempo, escapam a delimitações em Caranguejo Overdrive e Laio & Crísipo, novas montagens d’Aquela Cia. de Teatro, que comemora dez anos de atividade, apresentadas recentemente no Espaço Sesc, no Rio de Janeiro, com direção de Marco André Nunes e texto de Pedro Kosovski. Na primeira, a “ação” se passa no Rio de Janeiro, após a Guerra do Paraguai; na segunda, os personagens se encontram à beira de uma estrada, em lugar remoto.
Entretanto, Caranguejo Overdrive (que voltará à programação no dia 7 de agosto) mostra uma cidade em transformação que, porém, não altera realmente. Ao retornar da guerra, o soldado interpretado por Matheus Macena é informado de que o tempo trouxe mudanças. Mas, apesar de percebê-las numa esfera mais evidente, ele constata a continuidade de perversas estruturas de relação. Numa cena, a atriz Carolina Virgüez dá vazão a um jorro de palavras que dimensiona a perpetuação (folclórica) da corrupção na política nacional. Os acontecimentos não são os mesmos; a lógica de funcionamento, em todo caso, segue idêntica.
Em Laio & Crísipo, as vitrines de striptease localizadas numa estrada perdida podem remeter ao famoso bairro da Luz Vermelha, em Amsterdã. Há, na montagem, uma utilização consciente de clichês, a julgar pela cenografia (de Aurora dos Campos) e pelos figurinos (de Marcelo Marques), compostos por calças jeans justas e vestido vermelho com fenda. O elo com a contemporaneidade é realçado pelo tom coloquial, quase banal, do texto.
Contudo, as obras não se encerram em contextos determinados. Colocam o público diante de um concentrado de tempos. Em Caranguejo Overdrive, Marco André Nunes e Pedro Kosovski traçam instigante conexão entre o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX e o manguebeat. Já Laio e Crísipo contemplam, de fora, suas próprias jornadas, abarcando também o futuro ao anteciparem o que está por vir – a tragédia de Édipo, a partir do momento em que este, sem saber, matar seu pai, Laio.
Laio & Crísipo: apropriação da tragédia (Foto: João Júlio Melo)
Laio, Crísipo e Jocasta são abordados sem qualquer reverência. Se no passado longínquo permanecem como figuras emblemáticas, no presente surgem mergulhados no anonimato, destituídos de grandiosidade. Não há muita singularidade no triângulo amoroso que formam e o afastamento de um plano especial parece – pelo menos, em certa medida – intencional. Se existe algum problema nessa operação dramatúrgica, reside no fato de a tragédia soar aleatória, ao invés de vinculada à pesquisa do grupo, que montou anteriormente Edypop. Seja como for, ao priorizar Laio e Crísipo, Pedro Kosovski sinaliza o desejo de falar sobre a tragédia dos esquecidos, dos relegados a um destaque bem modesto. Em Caranguejo Overdrive, o protagonista, traumatizado pela guerra (um entre tantos outros), acaba engolido pelo sistema implacável. Os demais personagens despontam por meio de pinceladas, com contornos menos nítidos.
As construções dos dois espetáculos revelam percursos distintos. Em Caranguejo Overdrive, Marco André Nunes extrai de uma espacialidade básica imagens poderosas (como a do homem coberto de lama, imóvel) em cena potencializada por iluminação (de Renato Machado) algo opressiva. Em Laio & Crísipo, investe em partitura musical (direção musical de Felipe Storino, nos dois trabalhos) que contrasta com o arrebatamento, com o tom constantemente exacerbado, da montagem, que busca sintonia com o destemor da juventude, e iluminação (mais uma vez, Renato Machado) frenética, marcada por cores intensas.
Ainda que não seja um espetáculo que valorize particularmente as atuações, Caranguejo Overdrive surpreende com o naturalismo desconcertante de Carolina Virgüez (na passagem em que realiza uma explanação diante da plateia). Fica a impressão de que o sentido de improvisação faz parte da estruturação da interpretação. A construção, ocultada, não aparece para o espectador. Vale mencionar o domínio de Matheus Macena em relação à instabilidade do personagem assombrado pela guerra. Em Laio & Crísipo, Erom Cordeiro, Ravel Andrade e Carolina Ferman estabelecem provocante e catártico jogo de sedução, firmando, principalmente no que se refere ao primeiro ator, presença cuja expressividade transcende a contundência das palavras.
Crítica também publicada no site www.teatrojornal.com.br