Tragédia em cena potencializada por forças opostas
O Festival Cena Brasil Internacional reúne dois trabalhos de Dorothée Munyaneza – Samedi Détente e Unwanted – intimamente conectados. Em ambos, a artista (que acumula atuação, direção e autoria dos textos) conjuga tragédia coletiva com experiência pessoal, no que se refere ao massacre ocorrido em Ruanda, seu país natal, em 1994. Em Samedi Détente, que já encerrou as apresentações, Dorothée aborda a infância abortada pelo genocídio que tomou conta da nação; em Unwanted, que pode ser conferido ainda hoje no Teatro 1 do Centro Cultural Banco do Brasil, privilegia a dificuldade de mães para se relacionarem afetivamente com filhos gerados a partir de estupros, muitas vezes protagonizados por homens que dizimaram as famílias delas.
Nesse segundo espetáculo, a artista assume várias identidades. Fala, em especial, em nome de mães – atravessadas pela violência no vínculo com filhos indesejados – e de filhos – revoltados e sofridos. Entrelaça sua própria voz (e a de Holland Andrews, com quem divide o palco) com as de mulheres, gravadas em meio aos ruídos do som ambiente (o som é acionado diante do público). Comprometida, diretamente afetada pelo panorama terrível que descortina, Dorothée presentifica o passado. Há passagens que ganham ocasionalmente alguma ambiguidade, como na cena em que dá a impressão de rasgar um cartaz com a imagem de uma mulher quando, na verdade, parece, a partir de determinado momento, estar revelando-a.
Dorothée Munyaneza e Holland Andrews oscilam entre os extremos da suavidade e da fúria catártica. Dançam em meio a fragmentos de lembranças nostálgicas (a exemplo do som de caixinha de música, em dado instante) e a contundente rejeição do filho recém-nascido simbolizada por visão deformada. Produzem um contraste perturbador ao descreverem com docilidade a violência imposta a crianças. A articulação entre forças opostas também vem à tona na iluminação de Christian Dubet, às vezes sutil, às vezes inclemente, e na percepção, ao final, de que a tragédia não anula a possibilidade de recomeço, por mais penoso que seja. “É muito difícil, mas eu me dou a paz e rio”, diz Dorothée.