Teatro e show: fronteira polêmica
O elenco de Auê, em cartaz na arena do Espaço Sesc até o próximo domingo (Foto: Divulgação)
Auê, criação do grupo Barca dos Corações Partidos e da diretora Duda Maia, em cartaz na arena do Espaço Sesc até domingo, traz à tona uma discussão sobre a fronteira entre teatro e show e talvez sobre a possibilidade de coexistência das duas manifestações num mesmo trabalho. O espetáculo se aproxima mais da seara teatral no modo como os atores/músicos se colocam em cena, no que se refere à partitura de movimentos (a direção de Duda Maia prioriza especialmente esse campo) – as marcações ágeis, o domínio dos intérpretes sobre fragmentos do corpo unidos com organicidade. Por outro lado, evidencia vínculo com o show não por contar com textos reduzidos em sua estrutura – há espetáculos inteiramente compostos por músicas que nem por isso têm suas naturezas teatrais questionadas –, mas pela falta de uma espinha dorsal mais específica. Auê desponta como um trabalho que reúne 21 canções interligadas por um tema vago, abrangente, generalizante: o amor.
A lacuna não diz respeito à ausência de uma história, de um encaminhamento narrativo tradicional, e sim de uma espécie de costura mais consistente, capaz de fazer com que o resultado se distancie do formato de apresentação sequenciada de canções. A fala dos integrantes do grupo fica clara em poucos momentos, mais na parte final, a exemplo da canção Passarinho de Toda Cor, de Renato Luciano, que aborda a necessidade de cada indivíduo ser afetivamente aceito na afirmação de suas particularidades. Em dado instante sobressai, mas de maneira panorâmica, passageira, o sofrimento diante do amor não concretizado (já sugerido no nome do grupo). Auê, porém, se projeta mais pela sonoridade das canções e pelo somatório de talentos (canto e habilidade com os instrumentos) dos atores/músicos – Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Fábio Enriquez, Renato Luciano e Ricca Barros, além do músico Rick de la Torre – no terreno musical do que pela qualidade das letras, por melhores que sejam.
Independentemente de qualquer polêmica, Auê é um espetáculo com eventuais problemas de realização (nas primeiras canções ocorre certa sobreposição dos instrumentos em relação às vozes) e muitos méritos, a começar pelo fato de se tratar de um trabalho quase que totalmente formado por músicas de autoria dos próprios artistas presentes no palco (a exceção é Madeixa, de Moyseis Marques e Vidal Assis). O entrosamento dos atores/músicos deve ser creditado, em medida considerável, à conexão verticalizada em encenações anteriores – casos de Gonzagão, a Lenda e Ópera do Malandro, ambos assinados por João Falcão. Há uma dosagem cuidadosa entre canções mais enérgicas e mais suaves e a bem-vinda inclusão de solos potencializados pelas discretas contribuições de todos. A direção de arte de Kika Lopes – que investe em acúmulo de blusas que se tornam peles, tendo a transparência como elemento comum, e em cenografia simples, dimensionando a intensidade da paixão por meio de variações de vermelho nos carpetes – e a iluminação de Renato Machado – que propõe imagens de interseção e arabescos – também são colaborações importantes para esse espetáculo que realça, com energia contagiante, a brasilidade através do cordel.