Teatro de composições refinadas
Graziella Moretto e Pedro Cardoso em O Homem Primitivo (Foto: Divulgação)
O Homem Primitivo, montagem que acaba de encerrar temporada no Teatro das Artes, comprova a qualidade da dramaturgia de Pedro Cardoso que, evidenciada desde o saudoso período do besteirol (quando formou dupla com Felipe Pinheiro), se tornou mais ambiciosa com o passar dos anos. O ator continua escrevendo para os seus próprios trabalhos, dividindo a tarefa, nessa empreitada, com Graziella Moretto, também em cena, com quem assina ainda a direção do espetáculo.
Ambos procuram mostrar um panorama das relações travadas por integrantes de diferentes classes sociais. Entre outras questões, abordam a revolta do patrão diante das novas leis que favorecem o empregado, a dificuldade da mãe em fazer com que os filhos permaneçam longe do crime nas comunidades e os milagres propagandeados nas igrejas. Mas não retratam personagens mais e menos abastados economicamente apenas pela via da oposição. No terreno afetivo, a aproximação acontece – como na cena em que a cliente aconselha a psicóloga, inversão, aliás, não muito original.
O texto é bastante inspirado em alguns momentos, especialmente no que se refere às observações comportamentais. Os autores demonstram habilidade no modo como entrelaçam múltiplas jornadas e tramas paralelas (além do vínculo do casal com a empregada, destacam a via-crúcis de uma atriz estuprada durante as filmagens por um não-ator). Há, porém, instantes dispensáveis – a exemplo da primeira cena, marcada por desgastada brincadeira sexual. A recepção do público pelos atores poderia ser suprimida. Os vídeos centrados na escalada do machismo no decorrer do tempo, apesar de importantes dentro da proposta, atravancam, em certo grau, o andamento da montagem devido à duração excessiva.
Os diversos personagens têm perfis sublinhados pelo humor, dispostos em telas manuseadas pelos atores. Entretanto, a concretude dos rostos não restringe as possibilidades de composição. Pedro Cardoso confirma, mais uma vez, a precisão do timing e da expressividade corporal, conhecidos atributos de seu trabalho. Transita por vários personagens sem se limitar à esfera da caricatura, captando, através de pinceladas largas (mas refinadas), traços rapidamente perceptíveis pelo espectador. Graziella Moretto tem atuação mais discreta, revelando, contudo, domínio vocal, a julgar pelas divertidas criações da apresentadora de televisão e da bispa.