Teatro, arte permanentemente aberta
Leonardo Netto em Três Maneiras de Tocar no Assunto, apresentado dentro da programação do recém-encerrado Tempo Festival (Foto: Juliana Chalita)
Um trabalho teatral nunca está finalizado. Uma apresentação é necessariamente diferente da outra porque os artistas não se mantêm iguais a cada dia e o mesmo conjunto de espectadores não se repete. Apesar de serem divulgadas como obras cristalizadas, as encenações que entram em circuito não estão terminadas. Mas a exposição de material em processo – frequente em festivais de teatro – sinaliza ainda mais o caráter pulsante de algo que se assume como aberto, a possibilidade de interferência do público no desenvolvimento criativo. Dependendo da fase em que o processo se encontre, pode ser a revelação de uma criação embrionária ou adiantada. Nesse segundo caso, talvez não haja significativa distinção na comparação com o que a plateia verá como trabalho encerrado. O selo “em processo” está ligado, pelo menos em parte, à determinação de lembrar que uma obra jamais fica pronta, de realçar a falsidade do acabamento tradicional, do produto bem embalado.
Integrando a última edição do Tempo Festival, Leonardo Netto mostrou Três Maneiras de Tocar no Assunto, em que acumula as funções de autor e ator sob a direção de Fabiano de Freitas. O trabalho contou com duas sessões destinadas, cada uma, a uma plateia reduzida, de 20 espectadores, na intimista Galeria 02 do Espaço Cultural Sergio Porto. A estrutura é formada por três solos independentes, dispostos, em cena, por objetos que sintetizam as circunstâncias contidas no texto: uma bacia com água, uma garrafa com bebida alcóolica e um microfone. O eventual elo entre os solos – não só no que diz respeito a discretas intersecções entre as situações propostas como a uma crescente conquista de autonomia em relação à questão abordada – sugerem, em certo grau, diversos estágios de um único indivíduo. Contudo, a atuação de Leonardo Netto parece caminhar mais na construção de pessoalidades específicas.
O assunto anunciado, mas não explicitado, no título é, em linhas gerais, a homofobia. Em plano mais localizado, Netto direciona o foco para uma faceta do problema que não costuma ganhar destaque: a alienação, no que concerne àqueles que assistem passivamente à discriminação, sem assumirem um posicionamento em favor de quem está sendo alvo de preconceito para não se comprometerem. O primeiro texto, O Homem de Uniforme Escolar, imprime o registro do desabafo referente à via-crúcis enfrentada pelas vítimas de homofobia nas escolas, praticadas por colegas muitas vezes sequer repreendidos por seus atos. A bacia com água é elemento simbólico e, ao mesmo tempo, literal (as cabeças dos assombrados pelo bullying constantemente enfiadas nas privadas) desse estado de permanente tortura. Há um contraste entre a esquematização do raciocínio em tópicos projetados ao fundo da cena e o jorro emocional que atravessa a dramaturgia. O segundo texto, O Homem com a Pedra na Mão, surge como evocação de um momento emblemático e catártico: a Revolta de Stonewall, em 1969, em Nova York, marcada pelo embate violento entre os frequentadores da boate de espírito libertário e os policiais repressores. Num texto que presentifica o passado por meio da estrutura narrativa, Netto descortina o jogo de poder nos bastidores (a conexão entre a máfia e a polícia). O terceiro, intitulado O Homem no Congresso Nacional, desponta como um pronunciamento ao vivo e cada vez mais exaltado – realizado por um deputado no ambiente da Câmara – na defesa da individualidade que o constitui. Os textos trazem citações – a peça A Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza, inspirada condensação doce-amarga das dores da infância no cruel universo escolar, o filme Precisamos Falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay (a partir do livro de Lionel Shriver), centrado na relação perturbadora entre mãe e filho, e a atriz Judy Garland, eternizada por O Mágico de Oz, de Victor Fleming.
Não são tantas as evidências que inscrevem Três Maneiras de Tocar no Assunto na “categoria” processo. Há uma escassez cenográfica, característica, porém, que pode decorrer de uma opção artística. A maior proximidade com um trabalho em gestação reside no fato de Leonardo Netto ler o texto em alguns instantes, mesmo que em outros não fique apegado a ele e fale com considerável fluência, demonstrando apropriação das contundentes palavras que escreveu.