Revelações graduais
Julie Wein em Dois Amores e um Bicho, montagem que encerra temporada no próximo domingo (Foto: Rodrigo Castro)
Assim como a dramaturgia de Dois Amores e um Bicho, de autoria do venezuelano Gustavo Ott, a encenação de Danielle Martins de Farias, que encerra temporada na Sala Multiuso do Sesc Copacabana no próximo domingo, se revela aos poucos diante do espectador. O texto parte da exposição de uma ação violenta do pai – ele matou a pontapés, anos antes, o seu cachorro – para descortinar um horizonte mais amplo (houve atentados no mesmo dia desse fato isolado e extremamente cruel). O modo como a peça é transportada para o palco também guarda surpresas, apresentadas à medida que a montagem avança.
A conjugação entre a esfera particular e a panorâmica, proposta por Ott, é instigante, mas não há como evitar a impressão de que o texto do autor soa mais impactante na instância intimista – na desestabilização causada em mãe e filha pela evocação do assassinato do cachorro pelo pai. A primeira havia minimizado o ocorrido para dar continuidade a um casamento acomodado, enquanto a segunda é confrontada com esse passado, o que a leva a redimensionar a visão de família e, em especial, do próprio pai. Ott ressalta as pulsões perversas encobertas sob a capa de bom comportamento, do retrato cordial tradicional até então ostentado no cotidiano.
Danielle Martins de Farias investe acertadamente no potencial sugestivo da peça de Ott, qualidade presente na cenografia de André Sanches – composta por cubos monocromáticos que trazem imagens (destacadas no decorrer da encenação) que remetem a pinturas primitivas e a um teatro de sombras e por gaiolas penduradas – e na direção musical de Felipe Habib, precisa na instalação de atmosferas, com os instrumentos parcialmente ocultados no cenário.
José Karini, Adriana Seiffert e Julie Wein interpretam, respectivamente, pai, mãe e filha e, em determinados momentos, figuras circunstanciais e transitam entre a narração e a vivência dos acontecimentos. No personagem questionado sobre o passado, Karini imprime intensidade nervosa que nivela, até certo ponto, sua atuação, apesar da evidente segurança em cena. Em registro mais discreto, Seiffert nem sempre demonstra uma escuta afetada pela catarse do marido e da filha, e Wein projeta de maneira sensível o sofrimento da filha diante da verdade sobre o pai.
A nova montagem de Dois Amores e um Bicho revitaliza, em algum grau, a peça de Ott, encenada anteriormente nos palcos brasileiros.