Repertório marcado por estruturas lacunares
Cena de Mateus, 10, espetáculo do grupo Tablados de Arruar (Foto: Otávio Dantas)
A companhia paulistana Tablados de Arruar apresentou ao público do Rio de Janeiro repertório composto pela encenação de Mateus, 10 e pela Trilogia Abnegação (Abnegação I, Abnegação II – O Começo do Fim, Abnegação III – Restos). Trata-se de uma importante iniciativa do Espaço Sesc, onde os espetáculos foram mostrados, na medida em que o intercâmbio entre trabalhos de grupos teatrais de cidades distintas muitas vezes não ocorre. Vale lembrar que o Sesc também trouxe recentemente, de São Paulo, a encenação de Cais ou Da Indiferença das Embarcações, da Velha Cia.
Há em Mateus, 10, montagem anterior à Trilogia Abnegação, um certo questionamento do conceito de interioridade a partir da jornada do pastor Otávio, que se tornou mais pragmático que espiritualizado. Na dramaturgia de Alexandre Dal Farra, o pastor externa seu desapego pela interioridade, definida com frequência como espaço depositário das emoções, da essência de cada indivíduo, oposta à aparência, normalmente entendida como embalagem, como uma espécie de capa enganadora e sedutora. O pastor parece desconfiar desse jogo de contrastes, mas se fixa na literalidade da aparência sem chegar a percebê-la como instância reveladora. Nesse sentido, o dinheiro tem que estar limpo. As notas poluídas precisam ser descartadas. O frango que ele rejeita no jantar deve apodrecer. A preocupação com a aparência se manifesta ainda no creme para pele vendido pela esposa do pastor – creme, porém, que a própria vendedora não usa.
O espetáculo dirigido por Dal Farra e João Otávio é dividido em três partes realçadas por mudanças na disposição espacial. A primeira coloca o espectador diante da desestabilização de Otávio em sua fé, crise que extravasa para a relação conjugal. Na segunda parte, o público é deslocado para outro espaço e passa a pertencer à massa de fiéis que preenche a igreja de Otávio. Na terceira, a plateia é deslocada novamente para assistir ao clímax dos conflitos num encontro entre todos na casa de um personagem onde imperam a ruína e a decadência morais. Esse último ato traz uma alteração de registro, substituindo a solenidade marcante até então pelo humor patético.
Essas variações chamam atenção nas dramaturgias dos espetáculos da Trilogia. Em Abnegação I, o texto é lacunar, destituído da intenção de localizar com exatidão o espectador acerca do contexto histórico no qual os personagens estão mergulhados. Em Abnegação II, a localização é feita. Logo no início do espetáculo, a plateia é informada de que o grupo se inspirou no assassinato do político Celso Daniel. Mas não há o intuito de reconstituir os acontecimentos de maneira tradicionalmente documental porque é impossível acessar o modo como se deram. Afinal, a evocação do passado é ficcional, resultante de uma interpretação dos fatos. Em toda a Trilogia (mas, em especial, em Abnegação III) há cenas em que os personagens dialogam sem se olharem, com os atores dispostos de frente para o público, recurso empregado talvez com o objetivo de assinalar a ausência de interação entre eles. Os atores – Alexandre Tavares, Amanda Lyra, André Capuano, Antonio Salvador, Clayton Mariano, Gabriela Elias, Janaina Leite, Vinicius Meloni e Vitor Vieira – aderem a um registro expansivo sem, contudo, enveredarem pela trilha do exagero. Constroem personagens críveis, distantes da mera caricatura.