Renúncia ao apelo do belo
Luiza Lemmertz e Caio Blat em Grande Sertão: Veredas (Foto: Alexandre Nunes)
À primeira vista, a encenação de Grande Sertão: Veredas guarda conexões com espetáculos anteriores de Bia Lessa, especialmente no que se refere à transposição de texto literário para o palco e ao investimento em estruturas cenográficas instigantes. Mas os elos de ligação não anulam as especificidades desse novo trabalho.
Essa versão do livro de João Guimarães Rosa recusa o belo como apelo. A estrutura de ferro (concepção espacial de Paulo Mendes da Rocha), erguida no foyer do Centro Cultural Banco do Brasil, que envolve o palco, impõe interferências ao olhar. Dispostos nos dois andares dessa estrutura, os espectadores veem o espetáculo atrás de barras de ferro, o que reforça a separação entre o público e a cena.
Bia Lessa, porém, se vale de procedimentos para aproximar a plateia da encenação. Determina que os espectadores assistam à montagem com fones de ouvido, mecanismo artificial que favorece a imersão na cena, na medida em que as vozes dos atores são ampliadas, assim como a partitura da música de Egberto Gismonti – com paisagem sonora de Daniel Turini e colaboração de Dany Roland. A diretora propõe a quebra da quarta parede (mas sem interação com a plateia) em momentos em que o protagonista, Riobaldo, destina falas ao público.
Os figurinos de Sylvie Leblanc também se afastam do belo convencional. A escolha da cor preta não uniformiza o resultado. Funciona como dramaturgia para Riobaldo – as peças que compõem seu figurino parecem desconjuntadas, próprias a um personagem confrontado com o amor por (supostamente?) outro homem, Diadorim, em desajuste com o universo rude, arraigado, tradicionalista, dos jagunços do sertão. A neutralidade cromática é realçada pelos bonecos sem cabeça (adereços de Fernando Mello da Costa) lançados no palco e em exposição no CCBB fora do horário de apresentação. O desenho de luz, de Bia Lessa e Binho Schaefer, evoca o sol inclemente do sertão, sem, contudo, se limitar a um registro fotográfico.
Todos esses elementos remetem e, por outro lado, transcendem o ambiente onde a história se desenrola. Bia Lessa não ignora, mas não se prende a uma reconstituição realista. Afinal, como afirma Guimarães Rosa, “o sertão é dentro da gente”. A diretora adota a perspectiva intimista – a relação entre Riobaldo e Diadorim, a produção de imagens que estimulam os espectadores a interiorizarem o mundo descortinado diante de seus olhos –, sem abrir mão da dimensão épica da obra original, numa encenação que não prioriza a espetaculosidade visual.
Em contraste com uma eventual sensação de grandiosidade suscitada pela estrutura espacial, Bia Lessa conduz o elenco no caminho da sugestão de imagens por meio da síntese, a exemplo da movimentação de corvos desenhada através dos corpos ou do emprego de objetos reduzidos, simples, dentro da cena. A teatralidade é acentuada ainda por meio do desdobrar da maioria dos atores em variadas personagens.
Apesar do protagonismo de Riobaldo, a diretora potencializa o coletivo, as presenças de todos os atores. De qualquer modo, mesmo diante da qualidade e do comprometimento imperantes nas atuações de Balbino de Paula, Daniel Passi, Elias de Castro, Leonardo Miggiorin, Leon Goes, Lucas Oranmian, Luisa Arraes e Luiza Lemmertz, não há como deixar de destacar a interpretação irrepreensível de Caio Blat, que encontra nuances no enorme bloco de texto de Riobaldo, trazendo-o para perto do público sem desvalorizar a gramática de Guimarães Rosa.
Certas características que atravessam essa apropriação de Bia Lessa de Grande Sertão: Veredas sinalizam alguma proximidade com encenações do Teatro Oficina/Cia. Uzyna Uzona – a habilidade em construir provocantes imagens cênicas, o debruçar sobre obras monumentais da literatura, a conciliação entre protagonismo e entrosamento coletivo nas atuações, a estrutura arquitetônica descarnada. Artista que vem estabelecendo vínculos com diversas manifestações, intercâmbios marcantes em seus espetáculos, Bia Lessa confirma, aqui, a sua autoria sem incorrer em repetições.