Recriação da própria história
Álamo Facó em Mamãe, em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc (Foto: Ana Alexandrino)
Mamãe, novo trabalho de Álamo Facó em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc, pertence a um conjunto de encenações centradas no desejo ou na necessidade dos artistas de se colocarem de modo mais direto, em primeira pessoa, relatando diante do público suas próprias experiências. Não significa, porém, que devam ser vistas como equivalentes. Esse solo possui determinadas especificidades.
O caráter notadamente pessoal do monólogo Mamãe, já apontado no título, se torna evidente pelo fato de Álamo Facó acumular as funções de autor, ator e diretor (em parceria com Cesar Augusto). Facó traz à tona o sofrimento atravessado ao lado da mãe, Marple, ao longo dos seus 100 últimos dias de vida, vítima de um tumor cerebral.
O ator interpreta a mãe e a si mesmo, conferindo, em ambos os casos, nomes fictícios, talvez não com o objetivo de demarcar distância em relação ao material íntimo sobre o qual se debruça, e sim de realçar que, inevitavelmente, tudo o que expõe em cena é a sua versão. Não só a maneira como vivencia o passado, mas também como percebe a mãe e a si mesmo.
Ao assumir a mãe e a si como personagens fictícios, Facó parece constatar que não há como acessar os acontecimentos puros, como se deram realmente, que a evocação do passado decorre de apropriações personalizadas. Não há como reproduzir a mãe, “apenas” recriá-la. Facó se permite, então, mergulhar no cérebro dela, imaginar suas reações, sua consciência, durante o período do coma (momento da encenação em que a trilha sonora do ator e de Rodrigo Marçal sobressai).
O cenário de Bia Junqueira tangencia o real, mas sem ambicionar a reconstituição fidedigna de um dado ambiente – um quarto de hospital. A cama é formada por uma junção de cadeiras de acrílico, a luz neon, fria, ganha cores fortes e há uma ampliação do espaço delimitado para a apresentação quando o ator vai até o fundo e abre as cortinas, fazendo com que as janelas da sala Multiuso passem a ser as do quarto onde a mãe está internada.
Mas as imagens são mais sugeridas do que fixadas. Álamo Facó conversa, durante todo o tempo, com uma mãe invisível aos olhos do público e chega a corporificá-la num instante ao mostrar uma foto dela no telefone celular. Entretanto, o fundamental, para Facó, é frisar que a mãe continua viva dentro dele.
Facó revela à plateia a sua imagem da mãe e a presentifica por meio de construções de corpo e voz bastante visíveis sem, contudo, incorrer em artificialismos. Mas, apesar de tomar cuidado para não enveredar pelo maneirismo, a distinção entre o “eu personagem” e o “eu desarmado” (na medida do possível, levando-se em conta que está diante de um público) é clara. Na parte final da encenação, Álamo Facó enumera, sem qualquer efeito de voz, em tom menor, as etapas da via-crúcis da mãe (e, por extensão, dos familiares próximos a ela) de forma concreta, mas nem por isso menos emocionada.
O ator oscila entre esses dois registros, incluindo, eventualmente, mais um, neutro, como quando fornece à plateia breves informações sobre o tratamento experimental contra o câncer, como se fizesse um parêntese. No que diz respeito ao público, o ator procura inseri-lo em algumas passagens: ao quebrar a quarta parede e se referir a espectadores específicos ou à disposição espacial na qual se encontram, ao celebrar a plateia após os aplausos destinados à morte imaginária da mãe, ao atribuir a todos os presentes um papel – o de testemunhas passivas da agonia da mãe, que permanecem insensíveis frente à urgência de chamar um médico – e, como foi dito, ao discorrer, sem intermediações ficcionais, sobre a dolorosa jornada ao lado da mãe.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br