Realismo emoldurado e desconstruído
Taís Araujo e Lázaro Ramos em O Topo da Montanha (Foto: Juliana Hilal)
Peça da dramaturga norte-americana Katori Hall centrada no encontro entre o ativista político Martin Luther King, logo antes de sua morte, e a camareira Camae durante uma noite num hotel de Memphis, O Topo da Montanha segue a gramática do realismo para subvertê-la a partir do momento em que a verdadeira identidade da personagem feminina é revelada. A montagem dirigida por Lázaro Ramos (com codireção de Fernando Philbert), que encerra temporada no próximo domingo no Sesc Ginástico, realça, por meio de determinados mecanismos, essa transição do texto.
A cenografia de André Cortez, que insere o quarto de King dentro de uma moldura, ilustra bem essa integração. O quarto surge disposto num plano suspenso, numa espécie de palco sobre palco, pouco intimista devido à distância em relação ao público. Ao invés do ambiente tomar conta do palco imprimindo no espectador a sensação de realidade, o formato de quadro evidencia o caráter cenográfico, teatral. Quando o texto explode com o realismo, o cenário rompe com as delimitações de sua estrutura e se amplia. A iluminação de Valmyr Ferreira também sublinha transições da peça e as diferenças de registro – aberta nas passagens cômicas, recortando a figura de King/Lázaro nos discursos contundentes realizados de frente para a plateia –, além de injetar cor na neutralidade do cenário. Nesse sentido, o espetáculo expõe movimentos da dramaturgia de modo, até certo ponto, previsível.
Ao “obedecer” a peça, a montagem chama atenção para procedimentos empregados pela autora com resultado questionável, como a já mencionada ruptura do realismo (o problema não reside na proposta em si, e sim no encaminhamento dado à Camae) e a aposta em humor popular que passa a contrastar com a identidade dela. Os figurinos de Tereza Nabuco reforçam a oposição entre o político e a camareira através de roupa mais sóbria para ele e mais colorida para ela. Lázaro Ramos e Taís Araujo potencializam as principais características de seus personagens. Mas o ator valoriza oportunos e surpreendentes, apesar de breves, instantes de humor, na primeira metade. A atriz procura comunicabilidade mais direta com o público por meio das tiradas cotidianas que se opõem ao extremismo da situação. Ambos apresentam uma contracena fluente, conduzindo o espetáculo com segurança.
Mesmo reiterando, em algum grau, a dramaturgia, a montagem abre espaço para a sutileza – na trilha sonora de Wladimir Pinheiro, que fornece acompanhamento suave e constante – e para a autoria – nas projeções de Rico e Renato Vilarouca, em especial nas exibidas próximas ao final do espetáculo, estampando no palco diversas personalidades e iniciativas que contribuíram de maneira fundamental para a denúncia da violenta discriminação sofrida pelos negros. A encenação de O Topo da Montanha presta uma importante e justa homenagem, transcendendo – mas sem minimizar – o contexto histórico específico que aborda.