Um instigante concentrado do teatro de Antunes Filho
Blanche, versão de Antunes Filho para Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams (Foto: Bob Sousa)
SÃO PAULO – Apropriação de Um Bonde Chamado Desejo – peça de Tennessee Williams, em cartaz numa sala de ensaio do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no prédio do Sesc Ancheita –, Blanche reúne algumas características do teatro de Antunes Filho. Entre elas, a mais importante reside numa relação de tensão com o realismo.
No decorrer de sua trajetória, Antunes se debruçou sobre o realismo não com o objetivo de filiar-se cegamente a essa vertente, mas com o de transcendê-la. A localização da ação no modesto apartamento de Stanley Kowalski e Stella DuBois, irmã de Blanche, a protagonista, é frisada por meio de objetos simples. O encenador, porém, procura mais a quebra do realismo que a reprodução fidedigna do real.
Para tanto, se vale de diversos procedimentos. A ação não fica limitada às bordas do espaço, a exemplo das vozes que ecoam de um ambiente inacessível ao olhar do espectador – o apartamento de Eunice, a vizinha de Stanley e Stella. Apesar da concretude dos elementos que integram a encenação, os atores recorrem frequentemente aos objetos imaginários.
Além da referência a uma pia que não se encontra na cozinha, assim como à agua que não aparece nos copos, há o movimento de abrir e fechar gavetas que inexistem na cômoda que compõe o cenário (de José de Anchieta). O diretor poderia perfeitamente ter buscado uma cômoda com gavetas, mas optou por suscitar esse estranhamento, com o provável intuito de inviabilizar um vínculo baseado em identificação passiva, alienada, com a cena.
O afastamento de uma concepção de cena calcada na reconstituição do real também é propiciado pela evidenciação do espaço de sala de ensaio. Desde o início do projeto Prêt-à-Porter e das encenações de tragédias gregas – fase, portanto, posterior à parceria com J.C. Serroni, que rendeu cenografias impactantes, o que não significa meramente exuberantes, como as árvores sem copas de Vereda da Salvação, peça de Jorge Andrade, e os aquários do poema épico Gilgamesh –, Antunes vem sendo norteado pelo despojamento cênico para valorizar o texto e, em especial, a presença do ator.
Blanche conta com outros recursos que colocam o realismo em suspensão. O mais flagrante é o uso do fonemol, língua inventada que despontou em espetáculos anteriores de Antunes – casos de Nova Velha História, adaptação da fábula da Chapeuzinho Vermelho, e Drácula e Outros Vampiros –, utilizada agora na transposição de texto fechado de um dos dramaturgos representantes do realismo norte-americano.
A problematização do realismo vem ainda à tona na escolha de Marcos de Andrade para interpretar Blanche, uma personagem que justamente vive, em parte, fora da realidade, encastelada num mundo próprio, paralelo, dado potencializado pelo figurino de Telumi Hellen e pela trilha sonora (de Raul Teixeira) evocativa de filmes emblemáticos da história do cinema, de raízes melodramáticas ou fantasiosas.
Andrade surge com o rosto coberto com máscara branca, remetendo ao elo de Antunes com o teatro oriental (particularmente, com o butoh, de Kazuo Ohno), destacado em Trono de Sangue, versão de Macbeth, de William Shakespeare, atravessada por Trono Manchado de Sangue, filme de Akira Kurosawa que transportou a peça para o Japão feudal. Andrade e os demais atores – Andressa Cabral, Felipe Hofstatter, Alexandre Ferreira, Stella Prata, Vânia Bowê, Luis Fernando Delalibera, Bruno DiTrento, Antonio Carlos de Almeida Campos e Guta Magnani – reagem à contracena a partir da escuta, mecanismo que não é artificializado pelo fonemol.
Blanche mais concentra conhecidas plataformas do teatro de Antunes Filho do que apresenta propriamente uma nova linha de investigação artística. De qualquer modo, o espetáculo não se reduz a uma repetição de propostas praticadas ao longo do tempo.