Realismo em tensão
Marcos Suchara e Gabriela Duarte em Através de um Espelho (Foto: João Caldas)
Ingmar Bergman apresenta, em Através de um Espelho, uma ciranda de personagens desamparados, que tentam, sem sucesso, estabelecer comunicação, sintonia. São todos da mesma família, reunidos numa casa de veraneio, numa ilha (que remete à Ilha de Faro, lar de Bergman). Karin tem quadro de instabilidade próximo da esquizofrenia, bastante parecido com o que assombrou a mãe, já morta. Tanto ela quanto o irmão mais novo, Max, requisitam a atenção do pai, David, escritor que privilegia as questões profissionais em detrimento dos filhos e, mais do que isto, observa passivamente, à distância, o agravamento do estado emocional de Karin, pretendendo utilizar a dolorosa jornada dela como matéria-prima para uma obra. Martin, marido de Karin, procura ajudá-la, percebendo-se, porém, impotente diante da situação.
A montagem em cartaz no Teatro Poeira traz à tona a versão teatral a cargo de Jenny Worton para o filme de Bergman, mas possui créditos próprios (dramaturgia de Valderez Cardoso Gomes, adaptação de Marcos Daud e tradução de Yara Nagel). O diretor Ulysses Cruz problematiza o realismo, opção frequente em seus trabalhos – valendo lembrar da polêmica encenação paulistana de A Cerimônia do Adeus, de Mauro Rasi, e do enfoque destinado à personagem de Amanda Wingfield em Zoológico de Vidro, de Tennessee Williams, para citar dois exemplos mais extremados do que Através de um Espelho. A suspensão do real – evidenciada no original por meio da sensibilidade alterada de Karin, em particular no que se refere à audição – pode ser detectada no espetáculo em determinadas marcações dos atores e em certo hibridismo no cenário de Lu Bueno: ao mesmo tempo em que o público reconhece fragmentos de ambientes da casa familiar, alguns elementos escapam a uma reprodução cotidiana tradicional, como as luminárias revestidas de gravetos e sustentadas por um tronco (bela criação).
Os figurinos de Cassio Brasil revelam integração no predomínio de cores fechadas, cabendo fazer restrição apenas ao vestido cinza-chumbo de Karin, que talvez pudesse ser mais simples. A iluminação de Domingos Quintiliano é sutil e a trilha sonora de Daniel Maia, excessiva em sua constante sugestão de atmosfera de tensão. Ulysses Cruz conduz um elenco – formado por Gabriela Duarte, Joca Andreazza, Marcos Suchara e Lucas Lentini – de rendimento equilibrado, apesar da sobrecarga nos personagens mais intensos, casos de Karin e Max. Sobre Gabriela Duarte recaem as maiores responsabilidades e a atriz, visivelmente empenhada, projeta a desestabilização de Karin e só perde um pouco o senso de medida nos momentos mais catárticos de Karin.