Radiografia familiar repleta de humor cruel
Suzana Faini e Emilio Orciollo Netto em Família Lyons (Foto: Paula Kossatz)
Nicky Silver volta a abordar, em Família Lyons, um universo tomado por relacionamentos desgastados, que se tornaram arruinados com a passagem do tempo. Nos últimos dias de vida do patriarca, vitimado por um câncer terminal, a mãe e os filhos se reúnem e trazem à tona uma estrutura de funcionamento degradada. Os personagens procuram camuflar a imensa solidão por meio de incontinência verbal e de vínculos afetivos falidos ou inexistentes. Sofrem diante do descompasso entre o que desejaram e o que efetivamente aconteceu, mesmo que tentem disfarçar sob a capa do cinismo. É através do humor amargo que o autor destaca a interação absurda entre integrantes desse núcleo familiar destituídos de sintonia.
Na montagem em cartaz no Teatro Glaucio Gill, Marcos Caruso não faz com que esse panorama incômodo fique mais palatável para o público. O diretor preserva tempos esgarçados, sem investir numa aceleração artificial. Não recorre a recursos tradicionais, como o uso excessivo da trilha sonora (direção musical a cargo de Marcelo Alonso Neves, reduzida aos momentos de transição entre as cenas). Conduz espetáculo funcional, a julgar pela cenografia de Alexandre Murucci, que não embeleza o ambiente do hospital, adequadamente inóspito, e surpreende a plateia, em certa medida, com a engenhosa solução na troca de espaços. A iluminação de Felipe Lourenço demarca trajetos (a caminhada de cada personagem até chegar ao quarto), realça a atmosfera impessoal do hospital e investe em gradações ao valorizar reverberações íntimas de personagens específicos.
O elenco, apesar de eventuais desníveis, corresponde aos desafios da dramaturgia de Silver. Suzana Faini comprova habilidade ao percorrer diferentes estados emocionais, ao destilar crueldades de modo coloquial e ao afirmar seus propósitos de maneira mais contundente, a exemplo de sua última cena. Rogério Fróes compõe o patriarca sem meramente reproduzir a fragilidade física. O ator dribla as facilidades de um personagem de construção evidente, de acordo com o desenho sugerido no texto. Emilio Orciollo Netto demonstra domínio sobre os tempos internos da ação, estabelecendo contracenas afiadas, em especial com o corretor de Pedro Osório, que expõe as limitações do personagem. Zulma Mercadante interpreta corretamente, mas sem marca muito perceptível, a filha frustrada. Rose Lima empresta alguma autoridade à enfermeira na parte final do espetáculo.