Prazeroso terreno familiar
Stela Freitas e Analu Prestes em As Crianças, em cartaz no Teatro Poeira (Foto: Victor Hugo Cecatto)
Diante de As Crianças, peça de Lucy Kirkwood na encenação de Rodrigo Portella atualmente em cartaz no Teatro Poeira, o espectador caminha por terreno conhecido. A estrutura do texto, traduzido por Diego Teza, é perceptível: a autora apresenta os personagens (três físicos nucleares, dois deles formando um casal, Dayse e Robin, e a terceira, Rose, reaparecendo depois de décadas), sinaliza, na primeira metade, um universo temático (a sombra da morte, manifestada, com mais evidência, no câncer que afetou Rose, no acidente na usina e na dramática previsão para aqueles que trabalham nela), o confirma a partir do instante em que revela a questão que motivou Rose a procurar Dayse e Robin após tantos anos de afastamento e expõe os desdobramentos da revelação.
Rodrigo Portella investe na teatralidade por meio de escolhas também familiares. Os atores leem as rubricas da peça, aparentemente como um mecanismo de distanciamento que limita a possibilidade de o espectador se projetar de modo passivo na cena e, especificamente em relação a esse texto, como um recurso para destacar o fato de que a ausência de um dos personagens se constitui como presença, na medida em que os outros dois costumam se referir a ele.
O diretor segue tensionando o registro realista da dramaturgia na maneira como concebe a espacialidade, delimitando uma área do palco para os personagens transitarem. Mantém a ação no interior rústico da residência do casal, mas transcende essa localização por meio da inserção de pedras cobrindo o chão e de elementos (cavalo de balanço) e adereços (bexigas, pirulitos) que ilustram a faixa etária anunciada no título, marcante num momento em que os personagens observam as suas vidas em perspectiva e notam a conexão entre os polos temporais extremos da existência. Talvez as crianças do título ainda digam respeito a figuras apenas mencionadas (os mais jovens, que trabalham na usina).
A proposta de teatralidade se estende às demais criações que integram a encenação: a iluminação de Paulo Cesar Medeiros, bastante expressiva na sutileza que adquire quando reduzida, a música de Marcello H e Federico Puppi, que evita reiterar climas emocionais, os figurinos de Rita Murtinho, sintetizadores de certa oposição entre as personagens femininas, e as interpretações dos atores, em particular acerca da produção de sons. A relativa polarização entre Dayse e Rose – a primeira preserva um cotidiano saudável, numa eventual ilusão inconsciente de que vencerá a morte, e a segunda não se fixa em procedimentos de controle – desfavorece um pouco Robin como personagem, mas essa diferenciação não implica em desnível no rendimento das atuações. Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas oscilam entre o extravasamento e a contenção, de acordo com os perfis de seus personagens, sem, porém, caírem no risco da perda de nuances suscitada por um reducionista jogo de contrastes, que, em todo caso, não chega a se tornar um problema na peça.
As opções que atravessam As Crianças não soam propriamente originais, mas isto não prejudica a qualidade do espetáculo. Nessa montagem em que tudo funciona bem, o espectador tende a acompanhar com prazer um texto de construção identificável, interpretado por atores afinados e introduzidos numa concepção cênica concretizada com fluência.