Poder ilusório
Grace Passô: concepção, atuação e dramaturgia de Vaga Carne (Foto: Lucas Ávila)
“Sou uma voz. Apenas isso”, sussurra a atriz Grace Passô, em off, no início de Vaga Carne – trabalho em cartaz na Sala Multiuso do Sesc Copacabana –, momento em que a cena é preenchida por sua voz (ou “fluxo sonoro”) e por uma iluminação (de Nadja Naira) que destaca ausências ao incidir sobre uma cadeira vazia, um refletor, os instrumentos musicais.
Já em cena, Grace Passô se assume como uma voz que penetrou um corpo (“ou coisa”) e exerce poder sobre ele. Em dado instante, pede que os espectadores digam palavras e trata de colocá-las dentro do corpo (“vamos invadir o corpo dessa mulher com palavras”). A voz se percebe no comando do corpo (“Vou brincar mais disso – de entrar em carnes e fazer dizer”), como se não fizesse parte dele.
Há, de fato, uma falta de associação entre voz e corpo que remete, longinquamente, ao solo Eu Não, de Samuel Beckett, no qual uma boca não consegue parar de gesticular, sem aparente conexão com o movimento do pensamento. Em Vaga Carne, apesar de a voz proclamar uma superioridade em relação ao corpo, essa hierarquia se mostra ilusória. Libertar-se do corpo pode ser menos fácil do que parecia a princípio (“eu quero sair daqui. Chega!”). A afirmada onipotência é contrabalançada por uma sensação de aprisionamento.
O meio externo não é menos áspero (“lá fora existe um bicho feroz – o olhar dos outros”), constatação realçada por ruído que indica crescente pressão. Ao mesmo tempo em que a voz “se sente estrangeira” dentro do corpo, destituída de pertencimento, de vínculos no mundo (“não tenho pai, não tenho mãe”), há um desejo de estabelecer intimidade com o corpo (“Eu quero mergulhar nos seus líquidos”).
Responsável pela concepção, atuação e dramaturgia (mas dividindo a criação com Kenia Dias, Nadja Naira e Ricardo Alves Jr.), Grace Passô traz para a cena a situação hipotética de um corpo que não fala por si. Contudo, ao ser defendida, anunciada, essa identidade física tem a sua incompletude revelada, a julgar pelas frases inconclusas que encerram a apresentação e pela partitura formada por impulsos interrompidos que marca uma passagem sem texto.
Como atriz, Grace Passô explora possibilidades imprevisíveis, tanto em termos de sonoridade quanto no de (abertura de) sentidos, sem enveredar pelo mero jogo de efeitos e domina a articulação conflituosa entre voz e corpo. A mencionada luz de Nadja Naira adquire a potência de cocriação na parceria com a atriz.