Percursos imprevisíveis
Cirillo Luna, Beatriz Bertu e João Velho em A Ordem Natural das Coisas (Foto: Dalton Valério)
Leonardo Netto tensiona a ordem natural das coisas – não por acaso, título de seu texto cuja montagem (assinada pelo próprio autor) encerra temporada no próximo domingo no Mezanino do Sesc Copacabana –, a sequência mecânica de fases institucionalizadas da vida (casar, ter filhos…), por meio de um personagem, Lúcio, atropelado pelo não programado: na hora de oficializar o casamento, sua noiva desiste. A partir dessa situação-base, o dramaturgo mostra o cotidiano de seu protagonista deprimido, alterado pelas presenças do cunhado e amigo Emiliano e da vizinha Cecília.
O texto ganha com as reviravoltas em seu desenvolvimento. A primeira diz respeito à revelação da verdade sobre a entrada de Cecília na jornada de Lúcio. A elucidação afasta a peça do clichê do surgimento de um fato extraordinário no momento extremado da trajetória de um personagem. A segunda se refere à natureza do elo entre Lúcio e Emiliano. Bem inserida numa cena entre os dois, a transição é desnecessariamente explicada no diálogo entre Cecília e Emiliano no bar. Mas redimensiona o vínculo entre Lúcio e Emiliano e confirma o desejo de Leonardo Netto de valorizar o surpreendente, o imprevisto.
Há pequenos reparos a serem feitos no transporte da peça para a cena. Logo no início do texto/espetáculo, Emiliano observa que Lúcio se encontra estranhamente calmo tendo em vista o sofrimento agudo pelo qual está passando, mas a voz do ator João Velho parece embargada, atravessada pela emoção, desde o começo. O aumento da voltagem na contracena entre Lúcio e Emiliano, após a primeira aparição de Cecília, também não soa totalmente orgânico. São, porém, detalhes num texto estruturado com habilidade entre o convívio dos personagens no dia a dia e solilóquios de cada um deles que se constituem como breves interrupções da ação em que os atores/personagens sinalizam a existência do público no teatro (recurso empregado de forma mais evidente no último monólogo de Cecília).
Os solilóquios quebram com a interação ilusionista entre a plateia e o espetáculo. Esse distanciamento é realçado pelas criações que integram a montagem, como a cenografia de Elsa Romero, que relativiza o desenho realista do apartamento (em que pese a inclusão de diversas caixas relacionadas à situação destacada no texto) por meio de delimitações espaciais (paredes) e elementos vazados e do modo como a cor se impõe no palco (a porta vermelha, que contrasta com a neutralidade do resto). Essa “artificialidade” vem à tona na iluminação de Aurélio De Simoni, que, além de demarcar os estados emocionais dos personagens, distingue os planos do texto. Os figurinos de Maureen Miranda investem na descontração para Lúcio e Cecilia e em visual mais composto para Emiliano. A trilha sonora de Leonardo Netto injeta sabor nostálgico.
O autor/diretor conduz os atores com fluência. João Velho, mesmo com problema de emissão vocal (diz as palavras de maneira um pouco embolada), transita com sensibilidade pelos estados de Lúcio e evita a uniformização tanto nos instantes marcados pela depressão quanto naqueles dominados pela catarse. Beatriz Bertu interpreta Cecília em adequado e coloquial tom menor imprimindo credibilidade às circunstâncias. Cirillo Luna potencializa a escuta, o não-dito, especialmente a partir da virada de Emiliano, em expressiva atuação intimista.