Os bastidores do poder, segundo Shakespeare
Thiago Lacerda e Giulia Gam em Macbeth (Foto: Annelize Tozetto / Divulgação Festival de Curitiba)
Depois de uma temporada em São Paulo e de rápidas passagens pela Cidade das Artes e pelo Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, o Repertório Shakespeare, composto pelas encenações de Macbeth e Medida por Medida, peças de William Shakespeare, desembarcou no Festival de Curitiba. O projeto, que dá continuidade à parceria entre o diretor Ron Daniels e o ator Thiago Lacerda após a montagem de Hamlet, consiste nas apresentações de uma tragédia e uma comédia do autor.
A divisão entre tragédias e comédias na obra de Shakespeare, ainda que bem delimitada, difere da encontrada no teatro grego, pautado pela pureza dos gêneros. Shakespeare, ao contrário, se notabilizou pela mistura e fusão de gêneros. A liberdade de escrita em detrimento da obediência a regras previamente estabelecidas causou revolta nos tragediógrafos do classicismo francês, em especial em Racine.
De modos diversos, os textos abordam o abuso de poder. Na tragédia, o casal Macbeth não hesita em cometer assassinatos para conquistar o posto mais alto na hierarquia. Ambos mergulham numa espiral de violência que leva ao delírio e a alucinação, realçados em cenas conhecidas como a da visão de Macbeth do espectro de Banquo e a de Lady Macbeth lavando incessantemente as mãos para tirar manchas imaginárias de sangue. Na comédia, Ângelo se excede ao resgatar leis obsoletas que condenam Cláudio por ter engravidado Julieta sem contrair matrimônio. E Ângelo extrapola na natureza do acordo que procura travar com Isabella, irmã de Cláudio, prestes a entrar para o convento.
Thiago Lacerda e Luiza Thiré em Medida por Medida (Foto: Humberto Araujo / Divulgação Festival de Curitiba)
Ron Daniels unificou as criações de Macbeth e Medida por Medida com procedimentos comuns às duas encenações. Há um acúmulo de marcações frontais que gera certa sensação de linearidade. A proposta cenográfica (de André Cortez), com painel de fundo (instalação a cargo de Alexandre Orion) e cortinas de tiras transparentes, é a mesma, aproveitada, contudo, de forma mais impactante em Macbeth, com os rostos adquirindo feições de caveiras.
É possível perceber outros desníveis entre os dois trabalhos, na maior parte das vezes com melhor resultado na tragédia do que na comédia. Os figurinos de Bia Salgado, um tanto exagerados em Medida por Medida, têm como base um apreciável contraste entre a sobriedade dos trajes e o vestido vermelho de Lady Macbeth. A iluminação (de Fabio Retti) é mais expressiva ao explorar a atmosfera macabra de Macbeth. A trilha sonora (de Gregory Slivar) é mais suave na comédia e contundente na tragédia.
A intenção em aproximar as peças do público, em imprimir nos espetáculos um caráter popular, fica evidente – mais na comédia do que na tragédia, como seria de se esperar. Em Medida por Medida, porém, o diretor força a conexão com o universo político da contemporaneidade e investe em tentativa artificial de inclusão do espectador ao requisitar sua participação. Os excessos aparecem na tradução (do próprio Ron Daniels e de Marcos Daud), nos já mencionados figurinos e em algumas interpretações (como na de Marcos Suchara, como Lucio). No papel de Ângelo, Thiago Lacerda começa bem, mas sublinha mais que o necessário as motivações na cena em que se descobre apaixonado por Isabella, a protagonista que ganha atuação firme de Luiza Thiré. Os trabalhos mais contidos, discretos, acabam se revelando mais sólidos, caso também de Ana Kutner. Em Macbeth, Giulia Gam sobressai na construção de uma personagem lacunar como Lady Macbeth. Além dos atores citados, André Hendges, Fábio Takeo, Felipe Martins, Lourival Prudêncio, Lui Vizotto, Marco Antônio Pâmio, Rafael Losso, Stella de Paula e Sylvio Zilber, com eventuais descompassos, se lançam no desafio de fazer as peças concomitantemente.
Apesar das restrições aos espetáculos (conferidos na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro), o projeto merece elogios pela singularidade. Nos dias de hoje apostar em encenações de textos de um autor como Shakespeare é uma ousadia de escolha e de produção. Manter as montagens em repertório, com considerável número de atores se desdobrando entre ambas, torna o feito mais raro.