Oportuno sabor de época
Kiko Mascarenhas e Tarcísio Meira em O Camareiro, montagem em cartaz até o próximo domingo (Foto: Juliana Hilal)
A montagem de O Camareiro, em cartaz no Teatro Sesc Ginástico até o próximo domingo, pode ser inserida dentro da vertente do refinado teatro de mercado, caracterizada pela escolha de um texto de certa qualidade, que oferece aos atores boas possibilidades interpretativas, e por um padrão de produção que se tornou menos frequente com o passar dos anos devido aos custos envolvidos. Nesse sentido, a encenação dirigida por Ulysses Cruz caminha na contramão de um modelo funcional de teatro, imperante nos dias de hoje, e traz à tona um bem-vindo sabor de época.
O texto de Ronald Harwood – transportado para o cinema por Peter Yates (O Fiel Camareiro, de 1983) – descortina os bastidores de uma companhia de repertório em momento emergencial por causa da ausência e, posteriormente, do estado de saúde do ator veterano que deve subir ao palco para interpretar o Rei Lear de William Shakespeare naquela noite. O dramaturgo concentra a peça na figura do camareiro, cuja devoção ao ator ultrapassa em muito sua obrigação profissional, adquirindo as tintas da obsessão. Harwood também fornece um panorama das relações internas e regras de conduta do grupo. E sugere uma associação entre a fragilidade do ator e a do próprio Rei Lear, que, ao ser confrontado com a má índole de duas das suas três filhas e despojado de seus privilégios, envereda por processo de desestabilização. Por outro lado, o ator de Harwood recobra sua força ao entrar em cena.
A estrutura do texto é clara: começa com a preocupação dos integrantes da trupe com o desaparecimento do ator, ganha novo fôlego com a sua chegada, evolui realçando a tensão decorrente da dúvida acerca da capacidade dele fazer a sessão, culmina no instante da apresentação da montagem ao público e conclui com os acontecimentos seguintes à encenação. Apesar de a história ser ambientada dentro de um teatro, o mundo externo irrompe de forma ameaçadora através dos bombardeios em plena Segunda Guerra Mundial.
Ulysses Cruz assina um espetáculo fluente, que seduz a plateia sem qualquer dificuldade por meio do investimento nos trabalhos dos atores e no requinte de produção. O bom acabamento está estampado na cenografia de André Cortez, que reconstitui camarins e demais espaços do interior do teatro, destacando o perfil de companhia de repertório que tem em Rei Lear uma de suas atrações. A iluminação de Domingos Quintiliano e a trilha sonora de Rafael Langoni apostam acertadamente na suavidade, na contenção.
O texto serve de veículo aos intérpretes dos personagens do camareiro e do ator. Encarregado do primeiro, Kiko Mascarenhas se mostra habilidoso na exposição das distintas facetas do personagem num trabalho de construção minuciosa. Tarcísio Meira transmite a derrocada e, em contrapartida, a tenacidade do ator, personagem próximo em faixa etária, mas não em proposta de carreira, independentemente de juízos de valor. Afinal, enquanto o ator da peça se firmou nos palcos – e dentro de um esquema de funcionamento centrado na realização de encenações de textos diferentes a cada noite –, Tarcísio se notabilizou como profissional especialmente voltado para a televisão com visitas esporádicas ao teatro (não por acaso, a montagem de O Camareiro marca seu retorno depois de 20 anos). Nos papéis coadjuvantes, Analu Prestes sublinha a dureza da personagem, contrastada, de modo artificial pelo autor, com a revelação do vínculo afetivo com o ator, e Karen Coelho demonstra boa composição física e timing preciso. Lara Córdulla frisa as mágoas acumuladas e a distância no elo com o ator. Silvio Matos e Ravel Cabral completam a disposição com intervenções menores.
O Camareiro é um espetáculo ajustado em todos os quesitos. Presta importante contribuição à diversidade da cena atual devido à filiação a um formato de produção cada vez menos viável.