O teatro como arte lúdica
O Homem de La Mancha presta uma homenagem ao teatro ao valorizar a imaginação por meio de personagens que se descolam de suas realidades (adversas) interpretando outros. Na adaptação de Miguel Falabella para o texto de Dale Wasserman, montado pela primeira vez em 1965, eles vivem confinados num manicômio. Liderados por um interno que se identifica como Miguel de Cervantes, aderem a uma proposta de encenação e mergulham no mundo novo, rico e delirante de Dom Quixote e Sancho Pança, figuras centrais da célebre obra de Cervantes. O teatro é abordado a partir de convenções – da mentira encenada com o máximo de verdade, da caixinha de surpresas, das possibilidades ilimitadas que surgem do interior de um baú –, mas nem por isso soa menos autêntico. Os espectadores da montagem, em cartaz no Teatro Bradesco, são convidados a embarcar no jogo lúdico, em especial do momento em que o teatro dentro do teatro se estabelece em diante.
Essa versão de O Homem de La Mancha sinaliza uma mudança de contexto histórico em relação ao do texto original – da Inquisição espanhola à primeira metade do século XX. Falabella mantém o distanciamento ao não localizar a ação no aqui/agora. Não busca, porém, um período que suscite analogias com uma atualidade marcada pela repressão, apesar do ambiente do manicômio inevitavelmente sugerir isso. Mas ao invés de dimensionar o teatro como instrumento de resistência contra um regime tirânico – a exemplo da montagem de Flavio Rangel, apresentada no início dos anos 1970, auge da ditadura militar –, Falabella destaca a fantasia. Seja como for, suas interferências sobre o original norte-americano de Wasserman evidenciam que não anulou a própria autoria em prol da obediência a um modelo estrangeiro.
Num certo sentido, O Homem de La Mancha traz à tona o sopro poético, frequente na obra de Miguel Falabella, mesmo quando escorada em personagens e situações realistas. Esse espetáculo, contudo, pertence a uma vertente clara dentro do trabalho de Falabella, priorizada nos últimos anos: a do musical transportado para o palco com a pompa devida. Há talvez uma tensão entre a ideia de que o teatro como trampolim para a imaginação precisa de poucos elementos para acontecer e o formato grandioso de produção. Mas se por um lado o teatro, ao contrário de manifestações artísticas diversas, não depende de ferramentas técnicas, por outro a utilização delas – e em larga escala – não necessariamente encaminha o resultado para a ostentação, a mera exibição de luxo.
Essa impressão é confirmada pelas criações que integram o espetáculo, principalmente no que se refere aos figurinos de Claudio Tovar, repletos de detalhes (bordados, estampas, evocando a influência de Arthur Bispo do Rosário) dentro da uniformidade do cinza comum à maioria dos trajes. A cenografia de Matt Kinley procura impactar com a verticalidade do espaço do manicômio, com muitos janelões, difícil de escapar. A aparência opressiva do ambiente é realçada por uma iluminação soturna (em demasia) de Drika Matheus, que, em todo caso, imprime atmosferas distintas para os diferentes planos delimitados no texto (manicômio, hospedaria/taberna).
Na esfera estritamente musical sobressai o entrosamento do elenco coadjuvante – formado por Alice Zamur, Anelita Gallo, Beto Marquee, Bia Castro, Bruno Fraga, Cássia Raquel, Cássio Collares, Clarty Galvão, Davi Barbosa, Dino Fernandes, Ditto Leite, Fabrício Negri, Fernanda Biancamano, Floriano Nogueira, Fred Oliveira, Frederico Reuter, Gabriela Germain, Giovanna Oliveira, Guilherme Gonçalves, Helcio Mattos, Julio Félix, Luiz Gofman, Manu Littiery, Nando Motta, Noedja Bacic e Renato Caetano – nas cenas de conjunto. Alterado quase por completo na vinda de São Paulo para o Rio de Janeiro, o elenco, com oportunidades variáveis, executa com habilidade as coreografias de Katia Barros. Nos personagens protagonistas, Cleto Baccic imprime presença sólida que não se restringe ao peso da composição de Dom Quixote. Sara Sarres projeta o contraponto entre o sofrimento de Aldonza e o encanto da mítica Dulcineia. Jorge Maya enfrentou circunstância dramática na noite de estreia para convidados devido à perda da voz – as músicas destinadas ao seu personagem chegaram a ser cantadas em off por outro ator – e tentou compensar o problema acentuando o registro histriônico. Excetuado esse imprevisto, todos revelam qualidade vocal ao entoarem as melodias de Mitch Leigh (letras de Joe Darion).
A montagem de O Homem de La Mancha ressalta a possibilidade de apropriação de um musical importado. Miguel Falabella assume suas operações sobre o original e afasta a encenação do engessado modelo dos espetáculos controlados por meio de contratos que inviabilizam a autoria do artista.