O particular e o geral
Marcos Caruso em O Escândalo Philippe Dussaert, montagem de Fernando Philbert em cartaz no Teatro Maison de France (Foto: Paula Kossatz)
Mesmo que pince um caso específico – o de um suposto pintor (o Philippe Dussaert do título) que se notabilizou na reprodução de paisagens de fundo de telas consagradas – e que tome cuidado de, em dado momento do texto, ressaltar que não tem a intenção de abordar a arte contemporânea como um todo, Jacques Mougenot realça questões abrangentes sobre a obra de arte nos dias de hoje (quem atribui o valor, como estabelecer critérios para legitimar ou não o trabalho).
O dramaturgo, quase inevitavelmente, traz à tona uma recorrente polêmica sobre arte abstrata, muitas vezes tratada como golpe por não fornecer uma decodificação imediata dos signos no habitual intuito de estimular a livre apropriação do espectador. Esse incentivo à autoria, porém, por mais saudável, não garante a qualidade da obra. E há trabalhos que ambicionam desestabilizar ou surpreender o espectador e se reduzem a um mero efeito de choque, ocasionalmente impulsionados pelo jogo de marketing, pelo interesse em criar e promover celebridades. No texto de Mougenot, o mencionado Dussaert desponta como símbolo de determinadas distorções. Não é, portanto, um caso isolado. O escândalo Philippe Dussaert parece associar, por meio de constante ironia, iniciativas singulares a um vazio artístico. Essa articulação tende a gerar uma valorização do oposto: de uma noção de arte mais calcada em bases concretas, palpáveis, menos pautada pelo que se costuma chamar de invencionices.
É preciso incluir Marcos Caruso, ator do monólogo dirigido por Fernando Philbert, nesse debate. Artista que transita por diversas funções – ator, dramaturgo, diretor –, Caruso construiu sólida trajetória dentro do teatro de mercado (termo, aqui, desvinculado de juízo de valor). Como autor assinou sucessos de bilheteria, em voos solos, a exemplo da peça recordista de público Trair e coçar é só começar, e em parceria com Jandira Martini, em textos como Porca miséria e Sua excelência, o candidato. Caruso é representante genuíno da comédia de costumes, gênero que, iniciado com Martins Pena, atravessa o teatro brasileiro. Menos frequente como diretor, firmou bem-sucedido percurso como ator, seja no teatro, seja na televisão. Apesar do texto de Mougenot, de origem francesa, não ter evidentemente sido escrito para Caruso, há uma conexão entre a peça – que, de certo modo, defende uma perspectiva de arte mais tradicional – e um artista inserido no mercado.
A encenação é complementada, ao final, com uma mensagem tradicional (qualquer mensagem, por si só, pode ser considerada como um mecanismo tradicional na relação com o público), um destaque a um sempre referido paradoxo do contato ator/espectador no teatro: o ator como aquele que mente com o máximo de verdade, convencendo a plateia de informações fictícias e estados emocionais que soam como próprios do intérprete, mas pertencem ao personagem. Vale lembrar que Bosco Brasil estruturou sua peça Novas diretrizes em tempos de paz sobre a capacidade do ator, por meio das suas ferramentas interpretativas e de sua cultura teatral (evoca o texto A vida é sonho, de Calderón de la Barca), fazer o espectador acreditar que está diante de um relato verídico e se emocionar. No texto de Brasil, um dos personagens assumia o lugar de ator e o outro, o de espectador. No de Mougenot, o ator solitário convence o público de que está relatando uma história que, de fato, aconteceu.
Para tanto, Caruso busca um registro de atuação invisível. O ator recebe os espectadores na entrada do teatro e, quando sobe ao palco para o espetáculo efetivamente começar, mantém o tom de conversa direta com a plateia, a quebra da quarta parede, a fala nada impostada, um estar em cena à-vontade que sustenta ao longo da sessão. O ator dá a impressão de se expressar em seu próprio nome, mas interpreta um personagem que explana, diante da plateia, o caso Philippe Dussaert. Ao público também é destinado um papel: o de espectador de uma palestra coloquial sobre Dussaert. Esse registro contrasta apenas nos breves instantes em que Caruso compõe uma suposta crítica de arte. Centrada no ator, a montagem demonstra investimento na economia de elementos cênicos, mas sem perder de vista a preocupação com uma dada concepção, a julgar pela escultura presente na cenografia de Natalia Lana e pela iluminação, ainda que vez por outra excessiva, de Vilmar Olos.
O escândalo Philippe Dussaert resgata um amplo debate – contido em Arte, peça de Yasmina Reza –, sem, contudo, levá-lo a avançar para além do lugar-comum, em que pese a segurança do autor no desenvolvimento de sua proposta dramatúrgica. Para avançar na discussão talvez seja necessário perceber que cabe analisar as obras separadamente e ceder às tentações de agrupá-las em blocos e de seguir apostando em contrapontos apressados – entre o abstrato e o concreto, o experimental e o mercado –, como se fosse preciso tomar um partido. Mas o espetáculo, bastante fluente, não tende a provocar incômodo no espectador. Se por um lado se pode fazer restrição à ausência de atrito que o universo temático deveria suscitar, por outro é um prazer assistir a Marcos Caruso em pleno domínio dos seus recursos interpretativos.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br
carmattos
13 de dezembro de 2016 @ 23:12
Excelente crítica. Parece dar a dimensão adequada do espetáculo em texto de primeira qualidade.
danielschenker
15 de dezembro de 2016 @ 13:15
Muito obrigado pelo reconhecimento, Carlinhos.