O oculto em evidência
O Livro dos Monstros Guardados, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal (Foto: Leo Viana)
Reunião de contos assinados por Rafael Primot (acrescida de dois de autoria de Daniel Galera), O Livro dos Monstros Guardados traz à tona personagens que, em sua maioria, ocultam modos de agir singulares (e, em alguns casos, perversos) por trás de uma aparente normalidade. Apesar de frequentemente manterem seus atos na clandestinidade, reforçando o caráter de atuação no cotidiano, eles deixam de ser regidos pelos limites da vida em sociedade. Primot resume as histórias em duas frases que abrem seu livro e são evocadas, durante o espetáculo, em off: “Quando eu era criança eu achava que os monstros se escondiam nos armários e embaixo da cama. Mais tarde eu descobri que eles moravam dentro das pessoas”.
Os textos são entrelaçados a partir de possíveis articulações sugeridas no material original. Ainda que o recurso não disfarce a estrutura monológica, o objetivo da direção (a cargo de João Fonseca e do próprio Rafael Primot) está em fazer com que a cena fique mais dinâmica, intenção alcançada parcialmente, tendo em vista certa sensação de repetição e alongamento que se impõe de dado momento em diante. Esse intuito também é perseguido por meio da permanência dos atores em cena realizando pequenas ações enquanto um dos personagens se encontra em foco relatando a sua história. Eventualmente, um ator/personagem interfere de forma sutil na narrativa do outro. A iluminação de Adriana Ortiz sublinha esse funcionamento concomitante através de varais verticais com lâmpadas que estabelecem luminosidade suave no palco, ao mesmo tempo em que o foco recai sobre um determinado personagem. Em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, a montagem é pautada pela simplicidade, a julgar pelo cenário sintético (composto por cubos, cadeiras, balanço) e pelos figurinos (destacando a oposição entre a neutralidade do cinza/preto e a intensidade do vermelho), ambos de Nello Marrese.
Os diretores encaminharam os atores para propostas diversas. Uma parte do elenco evidencia um pouco mais o aspecto de depoimento por meio de entonação discreta, ao passo que a outra investe em composições mais visíveis, como que chamando atenção para as construções dos personagens. No decorrer do espetáculo, os atores que enveredam por linha mais “neutra” tendem a se aproximar de um registro estilizado. Não existe exatamente diferença de qualidade entre esses percursos distintos na abordagem dos personagens (há atores que atingem resultado mais ou menos satisfatório em cada registro), em que pese o fato de a composição mais marcada levar ocasionalmente à tipificação. Autor dos contos, Rafael Primot optou por se debruçar sobre personagem de um texto de Daniel Galera. A composição carregada não o impede de acessar a humanidade do personagem. Leandro Daniel acerta ao não apresentar a jornada sexual de maneira sensacionalista. O ator aposta em contenção que contrasta com a virulência das experiências reveladas, potencializando-as ao invés de simplesmente reiterá-las. Erom Cordeiro busca variações para distinguir seu personagem das circunstanciais figuras mencionadas ao longo de seu relato. Laila Zaid valoriza oscilações e humor pontual no início do depoimento e se torna mais inflamada à medida que a atendente assume as características de justiceira. Jefferson Schroeder realça sotaque e construção física na criação do homem refém da assepsia. Carolina Pismel concentra na voz a composição da menina que interpreta o mundo adulto. Guilherme Gonzalez procura projetar a fragilidade do menino em texto emoldurado por belas imagens da natureza.