O império do corpo
Renato Carrera e Leonardo Corajo em O Homossexual ou a Dificuldade de se Expressar (Foto: Caíque Cunha)
Copi – pseudônimo do dramaturgo, performer e desenhista argentino Raul Botana – está sendo evocado por meio de duas montagens, O Homossexual ou a Dificuldade de se Expressar e A Geladeira, que encerram temporada no próximo domingo, no Espaço Sesc. Apesar de escritos em décadas passadas (o primeiro, em 1971, o segundo, em 1983), os textos parecem atuais numa época em que os padrões sexuais pré-estabelecidos são cada vez mais questionados.
Em O Homossexual ou a Dificuldade de se Expressar, Copi reúne personagens que mudaram de sexo e vivem isoladas na Sibéria, cercadas por natureza inóspita. Mais do que abordar sexualidades que escapam a categorizações limitadoras, Copi potencializa o corpo. Traz à tona a autonomia do indivíduo em relação ao próprio corpo – no que se refere à nova constituição física com a troca de sexo –, o intenso exercício da sexualidade – através da prática de Irina, a personagem da filha, revelada logo no início – e, principalmente, o corpo reduzido às suas funções básicas e depois ferido, degradado, mutilado a partir de furiosa determinação – também por meio de Irina.
A encenação de Fabiano de Freitas, à frente do grupo Teatro de Extremos, valoriza as qualidades da dramaturgia de Copi (traduzida por Giovana Soar), sem, porém, enveredar pelo caminho tradicional da subserviência à obra original, conforme se pode constatar através dos elementos que integram o espetáculo. O cenário de Pedro Paulo de Souza é composto por tubos suspensos que separam o espaço de dentro da casa, onde se encontram as personagens, e o de fora, ameaçador. Os tubos se impõem como interferências, mas não exatamente como barreiras, ao olhar. Há conexão entre a cenografia e a iluminação de Renato Machado. Os figurinos de Antônio Guedes priorizam cores escuras, fechadas (contrastadas pelo vermelho) e são propositadamente pesados, ainda que haja certa quebra de austeridade, em sintonia com os perfis transgressores das personagens.
Fabiano de Freitas extrai notável rendimento dos atores centrais, Renato Carrera (a mãe), Maurício Lima (Irina) e Leonardo Corajo (a professora de piano, apaixonada por Irina). Cabe fazer menção especial ao trabalho de Carrera, bastante preciso no timing, na propriedade com que diz o texto (em particular, no tom de humor que imprime). Em papéis menores, Higor Campagnaro e Fabiano de Freitas têm atuações mais modestas. O Homossexual ou a Dificuldade de se Expressar desponta como destaque do panorama teatral.
Marcio Vito em A Geladeira (Foto: Caíque Cunha)
Em A Geladeira, o diretor Thomas Quillardet realça a sexualidade híbrida do personagem, a julgar pelo ator Marcio Vito, que, maquiado, não oculta a imagem masculina por meio de uma aparência feminina, mas acumula ambas. A incômoda presença de uma geladeira, dada pela mãe, é o ponto de partida para a desvairada jornada do personagem, que vive com a governanta/carcereira, num espaço familiar (dotado de utensílios domésticos que remetem ao passado) e desconcertante (devido à inclusão de animais empalhados). O espectador tende a se perder em meio à sucessão de acontecimentos, decorrência da dramaturgia (traduzida por Maria-Clara Ferrer), uma vez que Copi não procura fornecer a segurança de uma estrutura linear de história. Contudo, a encenação, por causa do texto, acaba restrita ao plano de um registro virtuosístico, centrado na habilidade do ator para se desdobrar em diferentes personagens. Sozinho no palco, Marcio Vito transita entre os diversos tipos, demonstrando apreciável dosagem dos tempos de interação entre cada um e domínio de composição. Mas a sensação que fica é de esterilidade. Seja como for, a importância do projeto supera a irregularidade entre as montagens.