O círculo vicioso do poder
Nana Yazbeck, Luciano Chirolli, Gilda Nomacce e Felipe Haidar e, Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes (Foto: Juju Studio)
Texto de Rainer Werner Fassbinder, Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes aponta para uma inversão de forças que não se concretiza. Na situação-base descortinada pelo dramaturgo, Leopold, homem maduro, seduz Franz, jovem de 19 anos, revelando, desde o início, sua determinação em exercer o papel de dominador dentro do relacionamento amoroso, relegando ao outro o lugar da submissão. Ainda que, em dado momento, Franz diga a Leopold as palavras que ouviu dele no quadro anterior (“Tire a roupa”) e que o primeiro ocasionalmente expresse seu descontentamento em relação ao segundo, o jogo de poder entre ambos não é reequilibrado.
A montagem da Cia. Empório de Teatro Sortido, dirigida por Rafael Gomes e apresentada no Teatro 3 do Centro Cultural Banco do Brasil como atração da programação do festival Cena Brasil Internacional, também realça essa inversão tão-somente prevista por meio da cenografia de André Cortez, que passa a “registrar” o mesmo ambiente (a casa de Leopold) sob ângulo diverso a partir da entrada de Anna, ex-namorada de Franz, personagem que desestabilizaria a lógica de funcionamento do elo entre os dois homens, mas que acaba “hipnotizada” por Leopold. É só no final, com o radical rompimento de Franz, que a soberania de Leopold sofre algum abalo.
Com estrutura dramatúrgica claramente composta por quadros interligados por um fio condutor, Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes (já transportado para o cinema pelo diretor François Ozon) demonstra filiação à temática da escravidão amorosa, presente em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, para citar outro original de Fassbinder. Também sugere possível vínculo autobiográfico, na medida em que o autor escreveu o texto aos 19 anos, idade idêntica a seu personagem, Franz. Na montagem, Rafael Gomes tangencia o realismo, mas tensiona tal corrente, seja ao investir em elementos imaginários (não há comida servida em cena), seja ao destacar a música como recurso de estranhamento (mencionada, porém, como pertencente ao universo de Franz).
O cenário propicia aproximação com o realismo ao colocar o público diante de diferentes cômodos da casa de Leopold, mas não reconstitui todos totalmente (do banheiro se vê um fragmento). Em sintonia com a proposta cenográfica, a iluminação de Wagner Antônio frisa a relevância de espaços onde os personagens não se encontram e adensa certas passagens, a exemplo daquela em que Franz discorre sobre suas fantasias homossexuais. A conexão bem perceptível entre as criações que integram o espetáculo não se estende ao elenco, tendo em vista o rendimento superior dos atores em relação às atrizes. Luciano Chirolli, como Leopold, entrelaça com habilidade doses de sedução e autoridade, em especial no primeiro quadro ao lado de Franz. Felipe Haidar, como Franz, transmite insegurança e vulnerabilidade no olhar e potencializa suas falas por meio de gestual não ilustrativo. Nana Yazbeck, como Anna, se mostra monocórdica. Gilda Nomacce, como Vera, ex-mulher de Leopold, se impõe sobre a personagem, bombeando intensidade que resulta tão-somente exagerada.
Apesar de Rafael Gomes nem sempre alcançar o senso de medida, incorrendo em eventuais excessos, Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes desponta, pelo menos na primeira metade, como um trabalho provocante.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br