No terreno das emergências
Cena de Tekoha – Ritual de Vida e Morte do Deus Pequeno, espetáculo do Teatro Imaginário Maracangalha, de Campo Grande (Foto: Danilo Vieira)
SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – A necessidade de abordar a realidade inflamada de maneira direta parece nortear duas montagens de rua apresentadas na recém-encerrada edição do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto: Tekoha – Ritual de Vida e Morte do Deus Pequeno, do Teatro Imaginário Maracangalha, de Campo Grande (MS), e Terra Abaixo, Rio Acima, da Cia. Cênica, de Rio Preto (SP). Ambas contam com dramaturgias que deixam a impressão de terem sido concebidas com o intuito primordial de conscientizar a plateia em relação a questões emergenciais, sejam aquelas que vêm atravessando o tempo e permanecem na pauta do dia, sejam as que despontaram recentemente no noticiário. Em certa medida, os grupos priorizam a contundência do discurso em detrimento de elaborações mais sutis, o que não significa que não haja, nos espetáculos, propostas de teatralidade.
Tekoha – Ritual de Vida e Morte do Deus Pequeno evoca o assassinato do líder guarani Marçal de Souza (1920-1983) para, a partir disso, prestar homenagem “a todas as pessoas que foram mortas no Brasil lutando por justiça”. O Teatro Imaginário Maracangalha procura estabelecer uma ponte entre um fato específico – mas, nem por isso, menos importante – do passado (o assassinato de Marçal) e o generalizado quadro de impunidade (“mais doloroso do que a morte”, como dizem em dado momento) imperante no Brasil de hoje. Por meio dessa articulação, o grupo frisa a perpetuação da violência promovida por uma parcela dos que detêm o poder com o objetivo de obter vantagens políticas e econômicas ilícitas. Tekoha se afirma como um espetáculo que, ao realçar sua sintonia com o panorama de crise aguda no aqui/agora, tenta estimular o público a partir para a ação (“a paciência acabou”, “vamos quebrar tudo”). Já Terra Abaixo, Rio Acima chama atenção para práticas nefastas que vêm sendo eternizadas – como a aniquilação da natureza em prol de interesses escusos (justificada, com hipocrisia, como etapa fundamental para o progresso e depois imposta pela força) e a expulsão de trabalhadores e indígenas de suas terras pelos mais abastados.
Nas duas montagens, porém, vem à tona, por meio de procedimentos distintos, uma relativização do real na construção das cenas. Essa característica é mais flagrante em Terra Abaixo, Rio Acima através do destaque a elementos simbólicos (a corda azul – que tanto pode representar o rio quanto, em esfera mais abrangente, o elo umbilical do homem com a natureza – presa à grande roda que os atores arrastam durante o percurso); à inclusão de situações fantásticas (a exemplo da que ocasiona a súbita transformação do capataz em porta-voz dos direitos do povo); a um visual que, apesar de escorado na realidade (as roupas gastas dos trabalhadores), expõe uma estilização (as maquiagens borradas, os acessórios nos figurinos); e a determinadas atuações que, diferentemente da empregada para o capataz, mais próxima do cotidiano, foram estruturadas a partir de composições bem marcadas. Em Tekoha, os atores transitam entre a narração e a vivência dos acontecimentos. Demonstram adesão a interpretações intencionalmente tipificadas que localizam de modo caricatural os personagens em seus lados da História. O grupo buscou um registro de atuação que sublinha a dramaticidade das denúncias, sem muito espaço para ambiguidades. Proclama as agruras do real, mas sem a ambição de reconstituir sua complexidade e suas nuances. O afastamento de um padrão realista também se manifesta na defesa de uma cena sintética, a julgar pela sugestão de circunstâncias de confinamento através de poucos bambus e pela costura vermelha dos figurinos, que, como a corda azul de Terra Abaixo, Rio Acima, abre-se a variadas possibilidades de associação, sem se prender a decodificação mais evidente – no caso, o sangue dos oprimidos que escorre sem trégua década após década.
Em Tekoha – Ritual de Vida e Morte do Deus Pequeno e em Terra Abaixo, Rio Acima, a proximidade com a plateia é acentuada, mesmo que não por meio da interatividade – ocorre pontualmente em Terra Abaixo…, na qual os espectadores acompanham os atores em itinerância. Em Tekoha, o elenco fala para o público que, disposto em círculo, é contagiado pelo tom acalorado das reivindicações, mas sem ser propriamente trazido para dentro da cena. Em algum grau, os espetáculos valorizam mais o teatro como instrumento de contestação do que a criação artística sofisticada. Ainda que não sejam polos excludentes, a transmissão sem subterfúgios de uma tomada de posição, de uma postura de cidadão, tende a implicar na renúncia a uma dramaturgia mais refinada. Essa discussão não é nova. Basta lembrar de iniciativas teatrais emblemáticas em instantes decisivos da história brasileira (e, claro, de outros países). Num contexto turbulento como o de hoje é natural que reverbere.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br
O crítico viajou a convite da organização do festival