Muita competência, pouca costura interna
Rodrigo Lombardi e Sergio Mamberti na encenação de Panorama Visto da Ponte (Foto: Alan Catan)
SÃO PAULO – Um Panorama Visto da Ponte, peça de Arthur Miller que ganha montagem dirigida por Zé Henrique de Paula, tem lugar singular na cena brasileira atual pelo investimento tanto numa dramaturgia de qualidade – valendo lembrar que o chamado teatro de texto não costuma ser uma das vertentes mais valorizadas na contemporaneidade – quanto num padrão de produção de apreciável acabamento.
O cuidado na concepção artística transparece na cenografia de Bruno Anselmo, que, por meio de contêineres, sugere uma geografia – a das docas, em Nova York – que tem mais importância que fornecer ao público uma dada ambientação. É elemento fundamental da constituição dos personagens e do contexto realçado por Miller, no que se refere à situação dos imigrantes – no caso, Marco e Randolfo, primos italianos de Beatrice, esposa do protagonista, Eddie Carbone, que procuram entrar ilegalmente nos Estados Unidos. O espaço algo claustrofóbico, apesar da amplidão do palco do Teatro Raul Cortez, em São Paulo, onde o espetáculo está em cartaz, favorece a questão central da peça de Miller, em tradução, aqui, de José Rubens Siqueira: a escravidão amorosa, no que diz respeito à crescente desestabilização de Carbone, apaixonado por Catherine, a sobrinha de Beatrice que ajudou a criar e com quem mora, diante da proximidade do casamento dela com Rodolfo.
O cenário, composto ainda por uma escada e por plataformas baixas, suspensas sobre o chão, não é o único fator que sobressai na encenação, cabendo ressaltar a iluminação de Fran Barros, crepuscular em alguns momentos e mais intensa nos instantes em que Carbone é diretamente mencionado pelo advogado Alfiere e nos determinantes dentro da trama, como aquele em que Carbone liga para o Departamento de Imigração. No entanto, mesmo com os evidentes méritos e sua relevância no teatro de hoje, a montagem de Zé Henrique de Paula se ressente de uma espinha dorsal, de uma linha conceitual que atravesse as escolhas que constituem o espetáculo, que revele uma leitura particularizada do encenador em relação à obra sobre a qual se debruçou. Sem essa costura interna, a análise da montagem fica quase inevitavelmente restrita a uma avaliação separada dos diversos quesitos que a integram. É como se as várias criações artísticas estabelecessem um diálogo limitado entre si. Em uma ou outra passagem, por exemplo, a linguagem realista é tensionada, mas essa sinalização não chega a ser encorpada como proposta da encenação sobre a peça.
No elenco, de rendimento irregular, Rodrigo Lombardi apresenta construção física (postura curvada) que contribui para a caracterização de Carbone, bem como para a transição sofrida pelo personagem, cada vez mais passional, ao longo da peça. Sergio Mamberti, ainda que um pouco prejudicado pelo modo repetitivo com que suas entradas são dispostas em cena, imprime presença sólida como Alfiere, transmitindo o empenho para conscientizar Carbone acerca da verdade. Patricia Pichamone potencializa de maneira expressiva a dolorosa percepção dos sentimentos que assombram o marido, assim como a inglória tentativa de mudar o curso dos acontecimentos. Gabriella Potye adota um tom melodramático que uniformiza o desenho de Catherine. Bernardo Bibancos projeta a fragilidade e, por outro lado, a firmeza de Rodolfo. Antonio Salvador desponta como um Marco sanguíneo. Gabriel Mello e William Amaral cumprem as exigências de suas reduzidas intervenções.
Um Panorama Visto da Ponte honra um teatro de mercado que perdeu significativo espaço nas últimas décadas. A montagem, em que pese o fato de a direção não enveredar por um percurso mais autoral, preenche essa quase lacuna.