Jorro poético em cena econômica
Kelzy Ecard, Gabriel Vaz e Carolina Ferman em Desalinho (Foto: Virginia Boechat)
As experiências relacionadas à presença de textos literários na cena vêm se acumulando ao longo dos anos por meio de propostas que, inclusive, questionam a necessidade da adaptação desse material a uma estrutura dramatúrgica. É o caso dos espetáculos assinados por Aderbal Freire-Filho, denominados de romance-em-cena, nos quais o diretor recusa a transposição ao levar livros para o palco de forma integral, sem qualquer ajuste de linguagem ou corte. Aderbal comprova, desse modo, que o caráter teatral do trabalho decorre da construção da cena e não propriamente do texto verbal.
Desalinho, de Marcia Zanelatto, desembarca na cena evidenciando forte influência literária (a referência à poetisa Florbela Espanca é assumida). Não parece haver preocupação da parte da autora em disfarçar essa conexão, o que, em si, não é um problema. Mas a natureza literária se impõe de maneira pouco orgânica nos primeiros minutos, com os personagens enunciando estados emocionais. É como se as palavras demorassem a ganhar vida cênica. Esta sensação, porém, não minimiza o valor do texto de Zanelatto, que concebeu uma obra lacunar, que deixa espaços abertos para o espectador preencher, a partir do elo entre dois jovens, a interna de um hospício e seu irmão, e uma enfermeira. Entre os “tópicos” abordados pela autora, sobressai a repressão a uma intensa e genuína urgência em dar vazão aos impulsos, em expressar os sentimentos livremente.
O diretor Isaac Bernat não evita que o texto soe duro ao público, pelo menos nos momentos iniciais, mas realiza opções corajosas ao investir numa cena despojada, destituída de efeitos que muito provavelmente se constituiriam como excessivos diante do jorro poético do texto. A cenografia de Doris Rollenberg (composta por objetos reduzidos que sugerem desequilíbrio, instabilidade), a iluminação de Aurélio de Simoni (concentrada nos personagens e em suas travessias) e os figurinos (neutros) de Desiree Bastos revelam integração na produção de uma atmosfera asséptica, propositadamente pouco atraente sob o ponto de vista visual. O espaço da arena do Sesc Copacabana também é bem aproveitado, qualidade realçada pela direção de movimento de Marcelle Sampaio. A destacar ainda, a delicada trilha sonora de Alfredo Del-Penho e João Callado.
No elenco, Gabriel Vaz compensa certa linearidade com a busca de sintonia com a pureza do personagem. Carolina Ferman imprime sincera e bem dosada carga passional. Kelzy Ecard, dona de bela voz, demonstra domínio das transições emocionais da enfermeira, que, embrutecida, passa por processo de sensibilização. Mesmo apresentado na arena do Espaço Sesc (a montagem migrará para a Sede das Cias.), Desalinho é um trabalho de pequeno porte, intimista, que merece a atenção do espectador.