Jogo de semelhanças e oposições
Kiko Mascarenhas em Todas as Coisas Maravilhosas (Foto: Jorge Bispo)
Meninas e Meninos e Todas as Coisas Maravilhosas – encenações em cartaz, em dias diferentes, no Teatro Poeirinha – despontam como trabalhos formulados em conjunto, o que fica evidente por meio de várias conexões: são monólogos, contam com nomes em comum na equipe artística e apresentam o público brasileiro a exemplares da dramaturgia inglesa que possuem afinidade temática no que diz respeito, em plano abrangente, a personagens confrontados com a morte de pessoas muito próximas.
Em Meninas e Meninos, de Dennis Kelly, o público é colocado diante de instantes temporalmente distintos de uma personagem, que fala sobre o relacionamento conjugal cada vez mais conturbado e a interação com os filhos, articulando realidade e imaginação sem demarcação didática de registro interpretativo. A narrativa é atravessada por um tom despretensioso, contrastado, na parte final, com uma revelação trágica que pode levar o espectador a evocar, longinquamente, Medeia, de Eurípedes. Essa passagem abrupta é reforçada na iluminação de Vilmar Olos.
Em Todas as Coisas Maravilhosas, de Duncan Macmillan e Joe Donahue, o espectador acompanha a trajetória de um personagem obrigado a lidar com a desestabilização emocional da mãe. A tragédia também está presente, mas não há, como na primeira peça, uma mudança brusca na temperatura dramática. Em graus variáveis, a infância se impõe como fase da vida destacada tanto num texto quanto no outro, ambos traduzidos por Diego Teza.
Maria Eduarda de Carvalho em Meninas e Meninos (Foto: Jorge Bispo)
O elo entre as montagens – Meninas e Meninos dirigida por Kiko Mascarenhas e Daniel Chagas, com interpretação de Maria Eduarda de Carvalho, e Todas as Coisas Maravilhosas, por Fernando Philbert, com Kiko Mascarenhas – vem à tona ainda na cenografia, a cargo de Mauro Vicente Ferreira, concebida a partir de certo jogo de oposição. Em Meninas e Meninas, os brinquedos espalhados pelo palco vão sendo arrumados ao longo da apresentação, enquanto que em Todas as Coisas Maravilhosas a quase ausência de elementos de cena é alterada, nos últimos minutos, pela entrada de caixas cujos objetos são dispostos no palco de forma intencionalmente caótica. Esse espelhamento invertido entre as duas montagens soa um pouco esquemático, na medida em que cada encenação é pensada não como criação autônoma, mas em função da outra.
As montagens integram o público na cena – porém, de maneira complementar e diversa. Em Meninas e Meninos, a quebra da quarta parede se dá pontualmente, apesar do caráter de explanação imperante no modo com que a personagem descortina sua vida. Em Todas as Coisas Maravilhosas, Kiko Mascarenhas requisita, com atrativo lúdico, a participação da plateia do início ao fim. Os espectadores são “convocados” a enumerar os prazeres cotidianos da vida e a interpretar brevemente figuras importantes para o personagem. Maria Eduarda de Carvalho acentua, em Meninas e Meninos, os momentos emocionais destoantes da personagem – o humor inconsequente e o impacto da tragédia ao final. A atriz não escapa por completo à linearidade decorrente, em algum nível, da extensão da narrativa na parte em que discorre sobre a jornada afetivo-sexual da personagem, problema, contudo, que não chega a ameaçar a fluência da montagem. Kiko Mascarenhas, em Todas as Coisas Maravilhosas, domina plenamente a interação com a plateia, sem sinais de dispersão, numa atuação de construção encoberta, apenas aparentemente simples. Os solos prestam apreciável contribuição ao panorama teatral da cidade.