Jogo de projeções
Ana Carolina Godoy e Rafael Steinhauser em Vênus Ex Libris, em cartaz até hoje na Casa Quintal (Foto: Carolina Garcia Marques)
Há um acúmulo de tempos na encenação de Vênus Ex Libris, criação coletiva a partir da novela do austríaco Leopold von Sacher-Masoch, intitulada A Vênus das Peles. Apesar de a obra, que já inspirou filme de Roman Polanski e peça de David Ives, remeter à segunda metade do século XIX e dos objetos contidos na sala da Casa Quintal, onde o espetáculo está sendo apresentado apenas até esse domingo, trazerem à tona décadas anteriores, o diretor Luiz Fernando Marques propõe moldura contemporânea ao localizar a ação nos dias de hoje. Talvez porque os conteúdos evidenciados na relação de dominação homem/mulher, potencializada em jogo sexual sadomasoquista, não pertençam especificamente a período algum.
Na operação dramatúrgica, um homem e uma mulher marcam encontro por aplicativo. Ele logo se submete à autoridade dela, posicionando-se de maneira subserviente. Aos poucos, realidade e ficção são entrelaçadas. Os personagens discutem sobre o livro de Sacher-Masoch – em especial, a respeito da pertinência no enfoque da mulher à luz dos debates recentes. Conjugam a situação do encontro sexual com a interpretação das personagens do autor. Esse plano, presente desde o início, é realçado a partir da segunda metade do espetáculo, quando ambos vestem figurinos austeros sem, porém, perderem de vista a circunstância original. Carolina Godoy e Rafael Steinhauser valorizam as características principais de seus personagens – a dominação decorrente da percepção de seu poder, no caso dela, e a impotência diante do desejo, no dele.
Luiz Fernando Marques imprime ambientação que insere os espectadores dentro da cena ao distribuí-los pelas laterais da sala da Casa Quintal, que, na cenografia de André Cortez, ganha ar de época intencionalmente improvisado – parte do mobiliário surge coberta com lençol. Procura contrastar as duas metades da encenação, a julgar pelos figurinos de Yumi Sakate – do tradicional traje sadomasoquista à nobreza de tecido aristocrático – e pela trilha sonora – notadamente mais suave à medida que a montagem avança. A iluminação de Wagner Antônio oscila entre a delicadeza da penumbra e a dureza da luz fria, mas dentro do mesmo plano. Contudo, em que pese o fato de ser estruturada por meio de oposições, Vênus Ex Libris atenua, ao final, um eventual maniqueísmo ao mostrar o indivíduo menos como figura concreta e mais como resultado da projeção do outro.