Jogo de espelhos
Marco Nanini, Carolina Pismel e Paulo Verlings em Beije minha Lápide (Foto: Cabéra)
Em Beije minha Lápide, Jô Bilac propõe um jogo de espelhamento que é valorizado pela montagem de Bel Garcia (que já passou brevemente pelos teatros do Centro Cultural dos Correios e Dulcina e deverá voltar aos palcos em 2015). Fã do dramaturgo irlandês Oscar Wilde, Bala, o protagonista, foi preso ao quebrar a barreira de vidro que isola o túmulo do escritor no cemitério de Père Lachaise. É possível que Bala espelhe, em algum grau, Wilde – em especial, no tom mordaz. De certa maneira, Bilac também se apropria de Wilde ao destacar tiradas irônicas. Não é a primeira vez que o autor busca esse “colamento” a julgar pela operação realizada em Cachorro!, montagem da Companhia Teatro Independente em que evocava a estrutura e a musicalidade da dramaturgia de Nelson Rodrigues sem, porém, plagiá-lo.
A tentativa de capturar a atmosfera de Wilde faz de Beije minha Lápide um texto espirituoso, mas não exatamente consistente. A peça de Bilac encorpa na segunda metade, quando a perspectiva do espelhamento é direcionada para uma disposição ou necessidade dos personagens de se exporem uns diante dos outros. Essa questão vem à tona na cena entre Bala e o guarda encarregado de zelar por sua cela, particularmente quando o segundo evidencia seu constrangimento decorrente do próprio desejo de apresentar ao primeiro determinados escritos (“é um tipo de nudez”, afirma). O caráter de revelação é reforçado à medida que Bilac desenha Bala como personagem fascinado por intimidade e os demais como figuras enredadas em vínculos passionais, viscerais.
Não por acaso, o espelho desponta como importante elemento cenográfico. Aprisionado num grande cubo de vidro, Bala está separado do restante do mundo, impossibilitado por essa barreira de travar contato. Até mesmo a aproximação dos corpos em relação à barreira é denunciada por alarme. Num dado instante, a imagem de Bala é projetada na parede de vidro, como se tivesse vida autônoma, o que pode sinalizar o tradicional descompasso entre corpo e alma, sublinhado pela iluminação intensa que parece envolver o protagonista numa espécie de aura dentro da cela. Em outras passagens, a imagem de Bala é multiplicada, como num jogo de espelhos. Talvez seja uma forma de lembrar que o indivíduo não é unidade, e sim multiplicidade. Assim sendo, o cenário de Daniela Thomas, a iluminação de Beto Bruel e os vídeos concebidos por Julio Parente e Raquel André potencializam as questões contidas na peça de Jô Bilac. Vale dizer ainda que a cenografia ficou mais integrada ao palco do Teatro Dulcina, que favoreceu mais o contraste entre a imagem grandiosa do cubo de vidro e uma pequena mesa, do que ao do Centro Cultural Correios. Os figurinos de Antonio Guedes apenas aparentemente espelham a condição sócio-econômica dos personagens, tendo em vista que são mais estilizados que realistas.
Na direção, Bel Garcia assume risco ao preservar tempos propositadamente esgarçados na interação entre os personagens, de modo a fazer com que o espectador visualize a reverberação da escuta na contracena e investe no trabalho dos atores. Marco Nanini se mostra fluente na interpretação de personagem que adquiriu confiança a partir das experiências de vida acumulada. Em sintonia com o extremado e libertário Bala, Nanini imprime presença contundente, mas abre mão dessa característica no monólogo final, seu melhor momento no espetáculo. Carolina Pismel demonstra segurança realçada no olhar e na fala da advogada. Paulo Verlings estabelece contracena precisa, alcançando apreciável atualidade ao seu desempenho, e confirma domínio da palavra. Julia Marini procura dimensionar emocionalmente o que diz e projeta a vulnerabilidade da filha de Bala.
Beije minha Lápide coloca a plateia diante da habilidade de Jô Bilac no manejo de uma construção dramatúrgica centrada na mescla entre solos e estrutura dialógica. Apesar de eventuais restrições, o espetáculo resulta da soma coerente – mas não reiterativa – de autorias.