Inquietação cristalizada
Roda Viva, encenação no Teatro Oficina/Uzyna Uzona em cartaz na Cidade das Artes (Foto: Jennifer Glass)
Nos últimos anos, José Celso Martinez Corrêa tem se mostrado interessado em produzir novas versões para espetáculos que marcaram definitivamente sua carreira. O Rei da Vela sinalizou importantes transições na trajetória do Teatro Oficina, a começar pelo fato de a companhia se distanciar de uma dramaturgia tradicionalmente bem acabada, realista, e abraçar um texto de estrutura “caótica”, de um autor “maldito” como Oswald de Andrade. Roda Viva – montagem do texto de Chico Buarque, experiência não diretamente vinculada ao Oficina, mesmo identificada com o grupo – estabeleceu uma aproximação com o Te-Ato, termo referente à prática de um contato físico, desestabilizador, entre a cena e o espectador, como forma de despertá-lo para a realidade opressiva em vigor no país. Não “apenas”: o Te-Ato, que culminou na encenação de Gracias Señor, propôs a suspensão da convencionada fronteira entre ator e personagem. Os atores passaram a surgir em cena de maneira mais comprometida, sem o recurso da ocultação “total” por trás das identidades ficcionais dos personagens.
O Rei da Vela e Roda Viva foram apresentadas com muita proximidade – a primeira em 1967 e a segunda, em 1968, instante emblemático de acirramento da ditadura militar, simbolizado, no caso dessa montagem, pela invasão do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que agrediu violentamente os atores. O Teatro Oficina, nos anos finais da década de 1960, adotou posicionamento frontal contra o regime e é natural que Zé Celso conceba as novas versões a partir de um atravessamento intenso com os acontecimentos de agora. Essa sintonia se manifesta, na encenação em cartaz na Cidade das Artes, por meio da indignação com o quadro político do Brasil, da situação enfrentada por países como o Chile e a Bolívia e da luta travada há décadas pelo Teatro Oficina, no que diz respeito ao impasse com Silvio Santos.
No entanto, esse caráter pulsante do espetáculo, essa vibração de uma cena gestada no calor da hora, soa algo cristalizada. A Roda Viva atual reedita determinados procedimentos da recente versão de O Rei da Vela para externar o mal-estar diante do imediato, ainda que a dramaturgia sobressaísse mais na peça de Oswald de Andrade. Apesar da postura legítima – considerando as crescentes dificuldades e os cerceamentos na área da cultura –, de ser louvável que cada espetáculo nasça como reação ao modo como o presente incide sobre o artista, a base de criação parece a mesma. A sensação é de certa repetição. Além disso, Zé Celso procura reforçar, em Roda Vida, a contundência da sua percepção sobre os dias de hoje por meio de uma abordagem questionável da passagem do tempo, na medida em que promove equivalências entre contextos distintos, em conjugações simplificadoras que não valorizam as especificidades de cada período histórico.
Mas não há como negar que a dramaturgia original de Roda Viva (pouco visível nessa releitura) favorece uma conexão temática, tendo em vista que a jornada de um músico cooptado por um sistema perverso pode ser articulada com a contemporaneidade. E, independentemente das restrições às ligações entre as fases históricas e aos princípios da criação, o espetáculo conta com cenas expressivas: parte do elenco revela apreciável domínio do registro caricatural na citação a figuras públicas do noticiário e a conhecidas personalidades do showbusiness. E, nos minutos finais, tomados pelo silêncio, Zé Celso confirma sua potência como encenador.