Identidades embaralhadas
Gilberto Gawronski em A Ira de Narciso, montagem de Yara de Novaes em cartaz no Teatro Poeirinha (Foto: Marcelo Almeida)
O fascínio pela morte desponta como espinha dorsal de A Ira de Narciso, texto do dramaturgo uruguaio Sergio Blanco que ganha montagem dirigida por Yara de Novaes atualmente em cartaz no Teatro Poeirinha, por meio da história de um personagem que chega a Ljubljana para dar uma palestra num congresso e se depara com manchas de sangue no quarto do hotel, detectadas em quantidade cada vez maior, pelas quais se sente irremediavelmente seduzido. O envolvimento sexual, de intensidade crescente, com um jovem esloveno reforça essa conexão com a morte, assim como o uso de drogas, a menção ao Mal de Alzheimer que afeta a mãe do personagem e a ira quase incontrolável dele, que, apesar de abalado em grau contundente pela falta de consciência política de seus colegas, envereda por certa alienação na relação com o rapaz esloveno – dimensão potencializada na interpretação de Gilberto Gawronski.
A morte também pode ser percebida numa dissolução de identidades sinalizada na estrutura do texto – uma narrativa em primeira pessoa que parece apontar que o protagonista é o próprio Blanco. Mas A Ira de Narciso não segue uma trilha confessional tradicional. Foi concebido como autoficção, na qual o dramaturgo dá a impressão de se expor de maneira direta nas experiências relatadas quando, na verdade, seu comprometimento provavelmente reside em esfera subjetiva, menos atada à concretude dos fatos revelados. Não se deve, em todo caso, perder de vista que até a narrativa assumidamente confessional implica numa ficcionalização do real.
Seja como for, a identidade de Blanco não é a única que vem à tona ao longo da peça. Há a identidade do ator (Gawronski), por um lado real – seu registro interpretativo, determinado pelo modo como é atravessado pelos conteúdos do texto – e por outro ficcionalizada – quando Gawronski se coloca como personagem no prólogo do espetáculo. E há as identidades dos personagens coadjuvantes e dos artistas citados (como o ator Jean-Paul Belmondo). A partir de dado instante, essas identidades se embaralham (será que o jovem esloveno é uma construção imaginária do escritor?, em que medida o real estimula a criação artística do escritor, a produção de um mundo fantasioso?) e se dissolvem. O acúmulo/dissolução de identidades surge ainda na interação entre Gawronski e o ator assistente Renato Krueger, que ora estabelecem um jogo de espelhamento, ora realçam a dissociação. Essas operações dramatúrgicas e cênicas tensionam, em algum nível, a perspectiva autocentrada sem, porém, anularem a possibilidade de entendimento do personagem como figura enredada em si mesma.
A instância ficcional é valorizada em elementos dessa encenação orquestrada por Novaes – em especial, na integração entre a instigante cenografia de André Cortez, composta por caixas de som que abrigam miniaturas dos objetos/locações destacados no texto, e a iluminação de Wagner Antonio, particularmente expressiva nas cenas ambientadas no Museu de História Natural.