Humor com travo melancólico
Arlete Salles, Patrycia Travassos, Elizângela e Alessandra Maestrini: A Partilha, agora no Teatro João Caetano (Foto: Cario Galucci)
Miguel Falabella olha com esperança para as personagens de A Partilha, irmãs que se reencontram no velório da mãe e promovem um acerto de contas doce-amargo ao longo do processo de divisão dos bens familiares. Maria Lúcia, Regina e Laura se esforçaram para reescrever suas histórias, mesmo que através de relacionamentos nem sempre norteados pelo amor. Se não acertaram, contabilizam, pelo menos, o esforço da mudança. Selma, apesar de ter se acomodado num casamento burocrático, começa a ensaiar uma transição.
A passagem do tempo diminui a possibilidade das personagens transformarem suas realidades e elas, apesar de desejarem recomeçar, já não têm a disposição da juventude. Em todo caso, o correr dos anos ajuda as irmãs a rirem de suas próprias mazelas. A capacidade das personagens de se divertirem com as suas trajetórias, até quando não conseguem evitar certo travo melancólico diante da evocação de fatos dolorosos, decorre da percepção de que a vida não deve ser levada tão a sério.
A forçada retomada do convívio gera inevitáveis discussões e rompantes catárticos. As irmãs hesitam, em dados instantes, entre o elo afetivo com o passado e o pragmatismo do presente. Lamentam, em certa medida, se desfazer do apartamento da família onde passaram parte de suas vidas (a saudade constante do espelho antigo simboliza isto), mas não a ponto de abrirem mão de uma visão prática. Precisam do dinheiro da venda e sabem que as lembranças continuam presentes dentro de cada uma.
A Partilha estreou há 23 anos e representou um divisor de águas na dramaturgia de Miguel Falabella, que já tinha acumulado experiência na escrita de textos ácidos e críticos do besteirol. Entretanto, aqui o autor apresentou uma abordagem amorosa que seria mantida em algumas de suas peças seguintes, especialmente em A Vida Passa, em que retomou, com bastante sensibilidade, as mesmas personagens, anos depois. Outros textos podem ser citados – como No Coração do Brasil, que nasceu das memórias da infância e adolescência na Ilha do Governador que vêm à tona por meio da carinhosa descrição de um cinema de rua; Querido Mundo, que evidenciou a habilidade em abordar o cotidiano da classe média por meio do convívio entre marido e mulher; e Como encher um Biquíni Selvagem, que comprovou seu apreço pela humanidade a partir da reunião de uma galeria de personagens numa estrutura de monólogo.
Essa nova montagem de A Partilha foi redimensionada. O primeiro espetáculo despontou em espaços reduzidos – os teatros Cândido Mendes e Vannucci –, contrastantes em comparação com a amplidão do Oi Casa Grande e, agora, como o do Teatro João Caetano. Se por um lado o intimismo deixa saudade, por outro as qualidades de A Partilha estão preservadas. Miguel Falabella entrelaça momentos mais feéricos com outros mais concentrados (como o ótimo encerramento na cena em que as irmãs lêem cartas escritas em diferentes partes do mundo, comprovando que as relações sobrevivem na distância).
A cenografia de Beli Araújo traz uma solução irresistível – e teatral – na passagem da primeira para a segunda cena e recria com competência o obsoleto apartamento de Copacabana, localizado na vizinhança de prédios célebres, como o Copacabana Palace e o Chopin. Os figurinos de Sonia Soares oscilam entre certa sobriedade no velório e cores fortes nos diversos encontros das irmãs, procurando diferenciar as personagens por perfil e esfera social. A iluminação de Paulo César Medeiros aquece o ambiente, revestindo de pessoalidade a atmosfera do velho apartamento.
Texto publicado no site Questão de Crítica.