Fusão de tempos ao som de Chico Buarque
O novo espetáculo de Charles Möeller e Claudio Botelho evoca o teatro antigo (Foto: Leo Aversa)
Charles Möeller e Claudio Botelho retornam ao universo de Chico Buarque depois das encenações de Na Bagunça do teu Coração, Ópera do Malandro, Ópera do Malandro em Concerto e Suburbano Coração. Agora destacam as composições realizadas para cinema, televisão e, principalmente, teatro. Nesse espetáculo, em cartaz no Teatro Clara Nunes, a dupla lembra o formato de trabalhos anteriores ao propor um encadeamento de canções dispostas segundo um roteiro, dispensando, em medida considerável, o texto. Mas existe algo novo nessa empreitada: a adoção do teatro como tema.
Nessa segunda década do século XXI, Möeller e Botelho conjugam passado e presente ao evocarem a estrutura de funcionamento de uma companhia de repertório própria do antigo teatro brasileiro, na primeira metade do século XX, quando reinavam atores como Procópio Ferreira, Jaime Costa e Leopoldo Fróes. A fusão de tempos também desponta no desordenado movimento da memória do dono da companhia – que, na tentativa (impossível) de reconstituir o passado, mistura fatos – e na referência à televisão. Entretanto, toda essa dimensão é mais anunciada do que propriamente afirmada em cena, tendo em vista que apenas os personagens do dono da companhia e da primeira dama ficam evidenciados no palco. Os demais se dissolvem num corpo único, a exceção de um ou outro instante – como aquele em que uma jovem atriz é contratada para a trupe, gerando ciúme na primeira dama.
As belíssimas canções de Chico Buarque não fazem o “enredo” avançar, objetivo deixado a cargo de textos em off normalmente inseridos entre cada bloco do espetáculo (oportunamente denominados no programa de “praça”, numa provável menção ao teatro mambembe, prática de décadas passadas). Nesse sentido, a montagem parece depender da palavra – recurso que, no seu conceito original, praticamente dispensa – para “evoluir”. Determinados procedimentos de inclusão do público – seja através do convite para que espectadores constituam uma pequena plateia e assistam a um bloco em cima do palco, seja da quebra no andamento da montagem para brincar com a duração de 90 minutos divulgada no título – soam postiços. Apesar das restrições, essa encenação comprova a competência de Charles Möeller e Claudio Botelho em suas respectivas funções. Há ótimas propostas, como a iluminação à base de lanternas em Pedaço de Mim e a escalação de atores para o embate de O meu Amor.
O espetáculo conta com um grupo muito afinado, mas com certos desníveis no campo interpretativo. É possível perceber uma discrepância entre as atrizes e os atores. Quem reúne de modo mais equilibrado a técnica musical e a qualidade na atuação é Renata Celidonio, que, aliás, merecia mais chances na divisão das canções. Expressiva, a atriz surge bastante bem em Ana de Amsterdã. Dona de bela voz, Malu Rodrigues realça intenções com sutileza. Soraya Ravenle fica incumbida dos maiores desafios (como cantar músicas emblemáticas, como Gota D’Água) e sai vitoriosa, em especial em Invicta. Lilian Valeska sobressai no momento contundente de Funeral de um Lavrador. Estrela Blanco investe em intensidade nem sempre bem dosada, problema que afeta – pelo menos, em parte – o elenco masculino. Claudio Botelho procura desenhar seu personagem com maior nitidez (talvez por ser o mais definido no roteiro) e imprime uma dramaticidade excessiva. Davi Guilhermme exagera em suas intervenções. Felipe Tavolaro permanece em plano adequadamente discreto. Cabe elogiar a presença dos músicos – Thiago Trajano, Luciano Correa, Priscilla Azevedo e Marcio Romano.
Há um entrosamento entre as diversas criações que compõem o espetáculo. Trata-se de uma decorrência da parceria de Charles Möeller e Claudio Botelho com alguns profissionais, como Rogério Falcão (cenografia), Marcelo Pies (figurinos) e Paulo César Medeiros (iluminação). O cenário é composto por uma plataforma suspensa e cadeiras. O aspecto duro, concreto, da cenografia contrasta com os tons vibrantes da iluminação. Os figurinos revelam interessante transição no decorrer da encenação – da predominância de tons pastéis, sobretudo para as atrizes, em trajes que trazem à tona o contexto da companhia de teatro, a cores mais fortes, carregadas.
Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos é uma prova de fidelidade e coerência de Möeller e Botelho em relação a vertentes do teatro musical que ambos vêm desenvolvendo ao longo dos anos e o resultado de uma articulação entre a esfera do entretenimento e um apreciável desejo de pensar sobre a história do teatro à luz da contemporaneidade.