Fúria localizada e panorâmica
MITsp – O espetáculo concebido e apresentado por Bertrand Lesca e Nasi Voutsas transita, na dramaturgia de Louise Stephens, do dramático para o épico ao partir do conflito entre dois indivíduos, relacionado a pratos quebrados, rumo a uma amplitude que sugere paisagens arruinadas, destruições em larga escala, e ao evidenciar o desejo de falar especificamente sobre a cidade de Palmira, na Síria – uma das mais bem preservadas até 2015, quando foi barbarizada pelo Estado Islâmico – e, ao mesmo tempo, transcendê-la.
A relação entre os dois homens é áspera, catártica. Uma dança não demora a se transformar em agressão. Aquele que se sente insultado pelo outro o ameaça com um martelo. De dado momento em diante, muitos cacos, reunidos dentro de grandes caixas, são despejados sobre o palco, que se torna poluído à medida que a montagem avança. O público é confrontado com uma visualidade que indica escombros, campos de guerra, que remetem a Palmira (o espectador recebe, na entrada do teatro, um folheto com dados sobre a cidade), mas também a geografias diversas do mundo.
Não há escuta, acordo possível entre os dois homens. Na verdade, não só entre eles. A sucessão de mal entendidos se estende à plateia. Os atores rompem a quarta parede e fazem pedidos concretos a determinados espectadores – guardar um martelo ou traduzir o que está sendo dito. A julgar por uma das apresentações, a comunicação palco-plateia ocorre de maneira algo acidentada.
Os espectadores não sabem exatamente quando devem parar de atender aos pedidos; não são informados sobre o instante em que não precisam mais interferir na cena. Por isso, essa desconexão parece, em certo grau, ambicionada por Lesca e Voutsas, uma postura corajosa, tendo em vista que a maior parte dos espetáculos busca, compreensivelmente, estabelecer vínculos, mais ou menos diretos, com a plateia. O intuito talvez seja o de chamar atenção para o fato de que, no contexto contemporâneo, a interação entre as pessoas é cada vez mais difícil, o que pode ser detectado nas várias manifestações de desrespeito em espaços destinados ao convívio coletivo e de intolerância diante de opiniões distintas nas redes sociais.
A gravidade das questões abordadas é contrastada com a trilha sonora que oscila do sublime em Händel à leveza em Gershwin (em Let´s Call the Whole Thing off) e com o próprio registro interpretativo de Lesca e Voutsas. Ambos revelam entrosado jogo cênico e, por meio do humor, dimensionam a violência com que a presença de um afeta o outro.