Flagrantes de desolação afetiva
Cena de Vieux Carré, do Wooster Group (Foto de Frank Beloncle, Andrew Schneider, Kaneza Schaal, Ari Fliakos)
Um dos grupos mais representativos da cena contemporânea, o Wooster Group visita São Paulo com duas encenações – Hamlet, apresentada semana passada, versão da peça de William Shakespeare que evoca, através do aparato multimídia, a produção dirigida por John Gielgud, na Broadway, em 1964, e Vieux Carré, de Tennessee Williams, que pode ser conferida até o próximo domingo, no Sesc Pompeia. A programação, que terminará no dia 31, é complementada com a instalação There is Still Time… Brother e a exibição de 21 filmes centrados em registros de performances da companhia. O Wooster Group virá ao Rio de Janeiro, nos dias 25 e 26, para mostrar vídeos sobre seus trabalhos dentro de um mini-seminário, intitulado Figuras do Movimento – Arte, Teatro e Cinema, na Casa de Rui Barbosa, organizadora do evento juntamente com o Núcleo de Estudos em Teoria do Teatro da UniRio (NIETT) e o Sesc Rio.
No que se refere a Vieux Carré, fica claro que Tennessee Williams se doou como matéria-prima de criação. A fragilidade de Laura, de À Margem da Vida, refugiada num universo repleto de delicados bichinhos de cristal, e a crescente renúncia de Blanche Dubois, protagonista de Um Bonde chamado Desejo, ao mundo externo expressam o desconforto do dramaturgo diante da realidade. Pelo menos da maneira como foi confrontado com a realidade, considerando as agruras familiares com as quais se deparou. Não por acaso, suas peças trazem à tona a necessidade de construção de um plano ilusório, paralelo.
Texto de Tennessee Williams de 1977, Vieux Carré evidencia questões caras ao dramaturgo. Existe uma tentativa no personagem de 28 anos, provável alterego de Williams, de encontrar sua natureza, afirmar sua verdadeira identidade. A vergonha de expor o próprio corpo e o desamparo diante de um cotidiano solitário num Estados Unidos distante da efervescência dos centros urbanos (o Sul do país é geografia determinante na dramaturgia de Williams) sugerem uma inspiração autobiográfica. O constrangimento frente à revelação da intimidade e a fala destituída de impostação despontam como elementos do trabalho do ator.
O personagem extravasa, de forma catártica, a dificuldade em relação ao modo como a vida se apresenta diante de seus olhos. As palavras são projetadas ao fundo da cena e, a partir de dado instante, todos os demais personagens parecem mais projeções de seu imaginário do que propriamente figuras reais, ainda que o meio-ambiente, tomado por sexualidade crua e por flagrantes de decadência, sobressaia no decorrer da encenação.
Fundado por Elizabeth LeCompte e pelo falecido performer Spalding Gray, o Wooster Group costuma priorizar a interface entre teatro e cinema por meio da utilização de projeções em seus espetáculos. Em Vieux Carré, essa marca do grupo está presente, seja através da preocupação em estabelecer sincronia entre as ações dos atores e as imagens projetadas em vídeo (como que presentificando a imagem cinematográfica, normalmente vinculada a uma captação circunscrita a um determinado passado), seja por meio da valorização das lembranças do personagem. Uma dimensão que também implica numa presentificação do passado.
Com frequência, as imagens registradas carecem de nitidez. Surgem gastas, como o tablado por onde circulam os atores, espaço arruinado que demarca a cor local de uma Saint Louis do submundo e a carência afetiva do personagem central. Esse “quadro” é sublinhado pela cenografia, na qual impera uma desordem na disposição dos elementos que soa proposital. Pelo palco, formado por dois tablados retangulares de tamanhos diversos, há duas telas suspensas, grades, um balde sobre um televisor e mais TVs pequenas ao fundo cujas imagens são difíceis de distinguir pelo espectador. A construção da cena está à mostra diante do público. A iluminação é manipulada pelos atores em alguns momentos e a equipe de criação trabalha ao fundo do palco, ao longo de todo o espetáculo.