Fina sintonia entre atores e texto
Daniel Dantas e Zezé Polessa em Quem tem Medo de Virginia Woolf? (Foto: João Caldas)
A força da palavra e a presença do ator são os principais atrativos da montagem de Quem tem Medo de Virginia Woolf? No que diz respeito ao texto, Edward Albee descortina um painel humano arruinado por meio das figuras de Martha e George, casal que acumulou mágoas ao longo dos anos. Filha do reitor da universidade onde o marido leciona, Martha se ressente da postura algo subserviente de George e do fato dele não ter alçado cargo superior na carreira.
Se até determinado momento os personagens parecem ocupar posições de algoz e vítima, de dado instante em diante Albee sinaliza a cumplicidade existente entre ambos, tanto no que se refere ao afeto quanto à preservação de um jogo calcado em ilusão. O casal mais jovem, Nick (também professor na mesma universidade) e Mel, se mostra mais atado a convenções que desmoronam, porém, quando eles são confrontados com a interação passional entre Martha e George.
Escrita em 1962, Quem tem Medo de Virginia Woolf? coloca o público frente a um mundo masculino. Não por acaso, o autor estrutura as cenas a partir do convívio/embate entre os quatro personagens ou dos diálogos privados travados entre George e Nick, nos quais expõem suas verdadeiras motivações por trás da atuação social – mantida, especialmente, pelo segundo. Já a relação entre Martha e Mel não é priorizada: não permanecem sozinhas no palco e não se sabe muito acerca do que acontece entre elas quando se encontram fora de cena.
O desafio dos atores está, sobretudo, em transitar com credibilidade por uma variada gama de sentimentos. O espetáculo tem no rendimento do elenco a sua maior qualidade. Zezé Polessa empresta contundência à Martha sem aderir a excessos. Dosa com habilidade rancor e fragilidade, valendo destacar o início de sua emocionada descrição do filho. Daniel Dantas colore o texto de intenções, verticalizando a sua abordagem da obra. Erom Cordeiro desenha o personagem com nitidez. O ator reage com naturalidade (devidamente construída) às intervenções dos demais. Ana Kutner exagera um pouco numa certa debilidade de Mel.
O diretor Victor Garcia Peralta lança um olhar respeitoso sobre a peça, procurando valorizá-la ao invés de se aventurar por uma leitura autoral. De qualquer modo, há criações a serem ressaltadas, a exemplo da iluminação de Maneco Quinderé, que se torna mais aberta ao final, possivelmente para assinalar a revelação do jogo até então compartilhado por Martha e George. A cenografia de Gringo Cardia ambienta a moradia do casal mais velho através de dois espaços – a sala e uma área mais reservada, onde George se refugia. O cenário gira, realçando a configuração do relacionamento entre George e Martha – que, há anos, não sai do lugar. Não é propriamente uma ideia surpreendente, mas o problema reside na sugestão de área externa formada por árvores de madeira com casas em miniatura como copas, que não propõe uma nova perspectiva em relação à obra. A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves, apesar de empregada com discrição, reitera estados emocionais.
É interessante que uma encenação como a de Quem tem Medo de Virginia Woolf? esteja em cartaz no Teatro dos Quatro, na medida em que se afina – pelo menos, até certo ponto – com o padrão de produção que imperou nessa casa durante os 15 anos (entre 1978 e 1993) em que o espaço foi conduzido por Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede. Se por um lado a montagem de Victor Garcia Peralta possui uma quantidade menor de atores do que a maioria dos espetáculos do Teatro dos Quatro no decorrer daquele período, por outro existem elementos de proximidade que cabem ser considerados, como a escolha de um texto que não ganha o palco brasileiro com tanta frequência, a escalação de atores renomados e o mencionado perfil de produção. Quem tem Medo de Virginia Woolf? evoca uma época em que o teatro de mercado ainda não havia cedido a apelos imediatistas para seduzir uma faixa de público mais ampla.