Fernanda Montenegro: mais sintonia que oposição no Prêmio Shell
Fernanda Montenegro, homenageada no Prêmio Shell (Foto: Divulgação Shell)
A cerimônia da 28ª edição do Prêmio Shell – que ocorreu na noite da última terça-feira, no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico, com apresentação da atriz Laila Garin – apontou um contraste apenas aparente: entre a vitória de alguns jovens realizadores envolvidos em espetáculos autorais – Caranguejo Overdrive, que saiu com as estatuetas de direção (Marco André Nunes), autor (Pedro Kosovski) e atriz (Carolina Virguez), Krum, vencedor nos quesitos ator (Danilo Grangheia) e cenário (Fernando Marés), e Salina (a Última Vértebra), consagrado no figurino (de Ana Teixeira e Stephane Brodt) e na categoria inovação (pelo processo de seleção e treinamento do elenco) –, decisão do júri composto por Ana Achcar, Bia Junqueira, João Madeira, Macksen Luiz e Moacir Chaves, e a homenagem à veterana atriz Fernanda Montenegro – cuja trajetória remete a companhias apressadamente classificadas como tradicionais, como o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a Companhia Maria Della Costa.
É preciso suavizar eventuais oposições. Fernanda Montenegro integra uma geração revolucionária, a primeira de atores do teatro brasileiro moderno, conduzida por diretores europeus que desembarcaram aqui ao longo das décadas de 1940 e 1950 transformando a cena do país. Os diretores levaram os atores a lidar com os textos de maneira menos arbitrária, a estudar as personagens ao invés de “tão-somente” aproximá-las de suas personalidades – e a preocupação com a peça não dava necessariamente vazão a montagens subservientes ao material escrito. Tanto o Teatro Brasileiro de Comédia quanto a Companhia Maria Della Costa foram iniciativas renovadoras do teatro brasileiro (mesmo que sem perder de vista a noção de cálculo, evidenciada numa alternância entre textos renomados e comerciais) que ganharam o carimbo de convencional, decorrente, pelo menos parcialmente, da implantação de um padrão de produção europeu (em especial, no caso do TBC).
Foi na Companhia Maria Della Costa que Fernanda Montenegro firmou parceria com o diretor Gianni Ratto e teve sua primeira grande oportunidade – na montagem de A Moratória, de Jorge Andrade, a cargo de Ratto, na qual interpretou o papel principal, gesto generoso de Maria. Com o marido, Fernando Torres, Ratto, Sergio Britto, Ítalo Rossi, Luciana Petruccelli e Alfredo Souto de Almeida, fundou o Teatro dos Sete, a primeira companhia moderna do Rio de Janeiro, pautada por comédias de alto nível (Martins Pena, Arthur Azevedo, Miguel de Cervantes, Molière, Georges Feydeau), além de uma aposta ousada em Nelson Rodrigues (O Beijo no Asfalto nasceu como encomenda para o grupo – feita por Fernanda), tudo escolhido por Ratto com rigor. O surgimento do Teatro dos Sete deve ser creditado, em parte considerável, ao pioneirismo do Grande Teatro da TV Tupi, capitaneado, no Rio de Janeiro, por Sergio Britto, que não hesitou ao aparecer diante das câmeras pedindo que os telespectadores fizessem uma assinatura dos primeiros espetáculos da nova companhia que iriam lançar.
Após o término do grupo, em 1965, Fernanda, Fernando e Sergio deram continuidade ao elo numa sociedade – a Torres e Britto Diversões Ltda., que durou até 1970. A partir daí, Sergio migrou para o Teatro Senac, onde imprimiu programação de qualidade, enquanto Fernanda e Fernando seguiram com os próprios espetáculos. O casal correu perigo no período da ditadura, a julgar pelo grande prejuízo econômico sofrido na produção de Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, montagem abruptamente proibida pela censura, e pelo atentado durante a temporada de É…, de Millor Fernandes. Na década de 1980, Fernanda realizou dois trabalhos arrebatadores: As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, direção de Celso Nunes para o original de R.W. Fassbinder, produção da sociedade Teatro dos 4, e Dona Doida – Um Interlúdio, reunião de poesias de Adélia Prado encenada por Naum Alves de Souza.
Fernanda Montenegro está na linha de frente de uma geração que valoriza o patrimônio cultural, que adquiriu sólido repertório não só teatral como cinematográfico (a famosa coleção de vídeos de Sergio Britto permanece como símbolo). Atores como Fernanda, Sergio, Ítalo, Nathalia Timberg, Paulo Autran e Jacqueline Laurence, entre outros, foram presenças mais que constantes nos palcos em décadas nas quais o teatro reverberava mais na vida brasileira do que hoje em dia. Em diferentes graus, transitaram entre empreendimentos de risco e o diálogo com o mercado (o que não significa nivelamento por baixo). “Eu gostaria de lembrar essa geração que vai de 80 para 100 (anos). Por incrível que pareça, existimos ainda”, disse Fernanda, em seu discurso no Prêmio Shell. O vídeo com fotos da atriz em diversos espetáculos, exibido na cerimônia de premiação, ilustra o vínculo com o teatro que manteve desde a década de 1950, afastando-se nos anos 2000 para voltar à cena com Viver sem Tempos Mortos, monólogo estruturado a partir de textos de Simone de Beauvoir, sob a direção de Felipe Hirsch.
Apesar de não ter liderado empreitadas inovadoras, Fernanda Montenegro pertenceu a elas. Ocasionalmente, esteve em espetáculos que redimensionaram o lugar do texto – como The Flash and Crash Days, no qual contracenou com a filha, Fernanda Torres, sob a direção de Gerald Thomas. Outros atores de sua geração também flertaram com uma cena pouco convencional – recentemente, Nathalia Timberg participou de Tríptico Samuel Beckett, criação de Roberto Alvim. Sergio Britto, com mais frequência, encarou proposições nada ortodoxas, valendo evocar trabalhos com diretores como Victor Garcia (Os Autos Sacramentais), Gerald Thomas (Quatro vezes Beckett, Quartett), Nehle Franke (O Poder do Hábito) e Isabel Cavalcanti (A Última Gravação de Krapp / Ato sem Palavras 1). Todos, porém, integram uma geração que mudou o teatro brasileiro. Talvez esse desejo de mudança possa ser conectado ao teatro desenvolvido por encenadores como Marcio Abreu, Marco André Nunes, Stephane Brodt e Ana Teixeira (os dois últimos, herdeiros do Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine), por mais que as concepções artísticas se revelem distintas.