Família repleta de lacunas
Tomás Braune em Inútil a Chuva, montagem da Armazém Companhia de Teatro (Foto: João Gabriel Monteiro)
Integrantes da mesma família, alguns dos personagens de Inútil a Chuva – Lotta, a mãe, Sarah, Slavoj e Claude, os filhos – não sabem muito sobre as vidas uns dos outros. Têm acesso a dados reduzidos sobre o marido/pai, que desapareceu. Trata-se de um mistério que assombra todos, ainda que de modos diversos. Enquanto Slavoj explicita agonia, Claude expressa revolta ao procurar desmoralizar a figura paterna. Claude, inclusive, se assume impulsionado pelo ódio, possivelmente espelhando o pai, que pintava “ódio sobre tela”, conforme dizem. Lotta dá a impressão de lidar com a partida do marido com menos passionalidade e nostalgia ao ressaltar a importância de seguir adiante de acordo com a disposição dos fatos.
Contudo, apesar das presenças de Lotta e Sarah, Inútil a Chuva, nova montagem da Armazém Companhia de Teatro atualmente em cartaz na Fundição Progresso, é uma peça marcada pelos personagens masculinos (levando-se em conta o pai ausente). O espectador se depara com embates entre Claude e Slavoj e assiste ao relato de outro, entre o marido/pai, logo antes de sumir, e o amigo Matthias. “Decidimos lutar só para deixar o sangue correr”, afirma Matthias, sinalizando adrenalina também contida em Lotta, a julgar pelo frisson provocado pelos passeios de motocicleta. É inevitável relacionar, mesmo indiretamente, o universo temático com o caráter familiar não só desse espetáculo (em que pai e filho – o encenador Paulo de Moraes e Jopa Moraes – assinam o texto, com colaboração de Maurício Arruda Mendonça, dramaturgo da companhia, e a esposa/mãe – Patrícia Selonk – surge em cena como Lotta) como da configuração do próprio grupo.
Os autores emolduram o texto com referências dramatúrgicas evidentes. No início há uma citação de Hamlet numa fala de Slavoj (“Se eu me fingisse de louco e chamasse uns atores…”) que remete à utilização do teatro como instrumento de revelação da verdade na peça de William Shakespeare. Guardadas as proporções, Slavoj, como Hamlet, não consegue administrar a intensidade do que sente. Já a cena catártica de Claude, que nega o valor das pinturas do pai e entra em colisão com a mãe, evoca o duelo entre o aspirante a dramaturgo Trepliov e a atriz diva Arkádina, personagens centrais de A Gaivota, de Anton Tchekhov. O debate artístico aparece nas duas obras – em Hamlet, por meio da famosa recomendação do personagem-título aos atores, e em A Gaivota, através do conflito entre as plataformas do Naturalismo e do Simbolismo, divergência que encobre a relação visceral entre Arkádina e Trepliov.
Talvez devido a certa fragilidade da dramaturgia, Paulo de Moraes demonstra dificuldade na condução dos atores. Patrícia Selonk mostra adesão às situações propostas no texto para Lotta, mas tem atuação nivelada pelo tom de voz monocórdico. Leonardo Hinckel dimensiona, de maneira algo exteriorizada, a insegurança e a sensação de inferioridade de Slavoj. Tomás Braune tenta dar credibilidade aos rompantes de Claude, parte deles de construção limitada na dramaturgia, a exemplo da mencionada cena de oposição ao pai. Andressa Lameu possui restritas chances de voo interpretativo por causa do desenho vago da personagem dentro da peça. Marcos Martins realça em demasia as intenções de Matthias. Amanda Mirasci busca apropriado registro econômico, mas sua personagem (a jornalista Vivian) não é favorecida no texto. De baixa voltagem, as cenas entre Vivian e Matthias contrastam com a contundência das ambientadas em família.
A concepção visual, que costuma chamar atenção nas montagens da companhia, sobressai um pouco menos que em trabalhos anteriores. O público é colocado em lados contrários do espaço, com a ação transcorrendo no meio, lembrando a empregada em encenações do grupo, como Da Arte de Subir em Telhados. A cenografia, de Paulo de Moraes e Carla Berri, é composta por um barco a remo, metáfora da união (ou da falta) familiar no começo e no final do espetáculo, uma grande janela e um praticável que se torna camarim ou banco. Os figurinos de Rita Murtinho sintetizam os perfis específicos de cada personagem. A iluminação de Maneco Quinderé aproveita a verticalidade do espaço da Fundição Progresso, ao mesmo tempo em que destaca a claustrofobia do ambiente familiar, suavizada pela luz do mundo externo que entra pela janela. A direção musical de Ricco Viana é ocasionalmente melancólica, doce-amarga.
Cabe fazer reparos ao resultado, mas Inútil a Chuva reúne, no âmbito da (problemática) dramaturgia, questões potentes e, na esfera da montagem, proposições instigantes, como a criação de determinadas passagens como quadros vivos.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br