Exemplo de rigor permanente
Mais do que contabilizar acertos ao longo da carreira, Marília Pêra, que morreu no último sábado, concentrou tempos ao reunir em suas atuações ensinamentos do teatro antigo, transmitidos pelo pai, Manuel Pêra, com procedimentos do teatro moderno, próprios de sua época.
Em depoimento à Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo incluído em capítulo dedicado à análise da montagem de Domingos Oliveira para Adorável Júlia, de Guy Bolton e Marc-Gilbert Sauvajon, no livro Sobre o Trabalho do Ator, de Mauro Meiches e Silvia Fernandes, Marília relata: “Eu acho que meu primeiro diretor foi meu pai. Ele me dizia, em uma peça, que eu fazia, assim: ‘Se você terminar essa frase com a inflexão, em vez de você terminar com a inflexão lá em cima, se você terminar pra baixo, vão te aplaudir’. Eu dizia: ‘Por quê?’. Ele dizia: ‘Não sei. Tenta’. E aplaudiam”. Atualmente, recursos empregados com o intuito de obter reação imediata do espectador podem ser questionados. Mas a habilidade do ator antigo (anterior à revolução cênica promovida pela versão de Ziembinski, com o grupo Os Comediantes, para Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, e pela fundação das primeiras companhias modernas do país, Teatro Brasileiro de Comédia e Teatro Popular de Arte) em monopolizar a plateia não merece desprezo.
Em todo caso, Marília se consagrou como exemplo de atriz moderna. Adquiriu plena consciência corporal, elemento até hoje confundido com vigor atlético. No mesmo depoimento, a atriz afirma: “Depois que eu passei pelo Klauss Vianna e pela Laura Proença, comecei a repensar o balé clássico (…) O Klauss me deu exercícios para fortalecer os músculos das minhas costas, para que através deles eu tivesse forças pra puxar meu ego para cima. E é uma coisa de corpo: quando você coloca o teu ego no lugar, isso mexe com a tua cabeça também”, observa, referindo-se a Klauss Vianna, que a dirigiu na encenação de O Exercício, de John Lewis.
O acúmulo está presente na trajetória teatral de Marília Pêra, que trilhou caminhos diversos. Realizou espetáculos bem-sucedidos a partir de textos brasileiros, como Fala Baixo senão eu Grito, de Leilah Assumpção (direção de Clóvis Bueno), Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde (direção de Aderbal Freire-Filho), A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato, de Bráulio Pedroso (direção de Antonio Pedro Borges), Síndica, qual é a tua?, de Luiz Carlos Góes (novamente, Antonio Pedro), e Doce Deleite, coletânea de textos de Alcione Araújo, Mauro Rasi, Vicente Pereira e José Márcio Penido (direção de Araújo), material depois retomado como diretora, função que exerceu com especial destaque em O Mistério de Irma Vap, de Charles Ludlam, nonsense com Marco Nanini e Ney Latorraca que permaneceu 11 anos em cartaz. Participou de montagens emblemáticas durante a ditadura militar, como Roda Viva, de Chico Buarque, no Teatro Oficina, espetáculo de José Celso Martinez Corrêa que sofreu a violenta invasão do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).
Marília marcou história no campo do musical desde a década de 1960, quando integrou as montagens de Como vencer na Vida sem fazer Força, de Abe Burrows, Jack Wienstock e Willie Gilbert (direção de Harry Hooliver e Sérgio de Oliveira), My Fair Lady, de Frederick Loewe e Alan Jay Lerner (atuando com Bibi Ferreira e Paulo Autran, sob a direção de Victor Berbara), Teu Cabelo não Nega, biografia de Lamartine Babo na qual compôs, pela primeira vez, a figura de Carmen Miranda (direção de Carlos Machado), cantora que revisitaria em outros espetáculos. A atriz manteve fidelidade ao musical nas décadas seguintes, a julgar por Pippin, de Roger O. Hirson (direção de Flávio Rangel), A Estrela Dalva, homenagem a Dalva de Oliveira por meio de texto de Renato Borghi e João Eliseu (direção de Roberto Talma), que deu partida à onda de musicais biográficos, Elas por Ela, tributo às cantoras brasileiras do século XX (direção de Marília e André Valli), Vitor ou Vitória – com libreto do cineasta Blake Edwards, música de Henry Mancini e letras de Leslie Bricuse (direção de Jorge Takla) – e, mais recentemente, Hello, Dolly!, de Michael Stewart, ao lado de Miguel Falabella (também diretor do espetáculo), parceiro frequente nos últimos anos. Cabe citar a interpretação de Marília como Florence Foster Jenkins, “a pior cantora do mundo”, em Gloriosa, de Peter Quilter, encenação a cargo da dupla Charles Möeller/Claudio Botelho. E suas encarnações de mulheres lendárias – Maria Callas em Master Class, de Terence McNally, e Coco Chanel, em Mademoiselle Chanel, de Maria Adelaide Amaral (ambos assinados por Takla).
Filha de atores (Manuel Pêra e Dinorah Marzullo), Marília Pêra subiu ao palco ainda criança, no período em que seus pais trabalhavam na Cia. Artistas Unidos, capitaneada por Henriette Morineau. É uma atriz que aprendeu na prática, mas não se limitou à experiência do dia a dia. Buscou aperfeiçoamento constante com rigor inquebrantável.