Esforço de renovação
Thelmo Fernandes, Ricardo Souzedo, Claudio Lins, Jorge Maya e Claudio Tovar em O Beijo no Asfalto – O Musical (Foto: Felipe Panfili)
Determinadas peças de Nelson Rodrigues estão ligadas a momentos emblemáticos do teatro brasileiro. Foi o caso de Vestido de Noiva, texto revolucionário levado ao palco em encenação divisora de águas, assinada pelo polonês Ziembinski, em 1943, com o grupo Os Comediantes. O Beijo no Asfalto não mudou os rumos da cena no país, mas também tem conexão com um período importante. Escrito sob encomenda para a atriz Fernanda Montenegro, então integrante do Teatro dos Sete (considerada a primeira companhia de teatro moderno no Rio de Janeiro, conduzida por Gianni Ratto e com núcleo formado, além de Fernanda, pelos atores Sergio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres), o texto foi montado pelo grupo e causou polêmica entre os espectadores. Contudo, a trajetória do espetáculo (dirigido por Fernando Torres, diferentemente dos demais do Teatro dos Sete, a cargo de Ratto), sofreu com a instabilidade na vida política brasileira decorrente da renúncia de Jânio Quadros.
Agora, sob a direção de João Fonseca, O Beijo no Asfalto ganha versão musical, que, após temporada no Teatro Sesc Ginástico (o mesmo em que a encenação do Teatro dos Sete foi realizada, antes da transferência para a Maison de France), segue em cartaz no Teatro das Artes. A proposta representa uma tentativa de renovação, parcialmente alcançada, em relação ao modo de abordar a peça. Claudio Lins (idealizador do projeto e intérprete do protagonista, Arandir) foi ousado ao inserir músicas na dramaturgia de O Beijo no Asfalto – e mais ainda pelo fato de parte delas ser de sua autoria. As músicas contextualizam época e expressam o que os personagens sentem. Apesar do louvável empenho na criação de uma trilha sonora original, as melhores passagens musicais são as que evocam canções conhecidas – a julgar pelos solos de Aprígio e Selminha em, respectivamente, Abismo de Amor e A Noite do meu Bem (esta última, com adequado acompanhamento em tom menor). Seja como for, a direção musical de Délia Fischer contribui para a qualidade do resultado.
Saudavelmente movida pela inquietação, a montagem é, porém, prejudicada pelo exagero, perceptível já na cena inicial, um tanto grandiloquente, que, como num trailer, antecipa lances da história centrada na via-crúcis de Arandir, que beija um desconhecido prestes a morrer na rua, acontecimento explorado com sensacionalismo. A sequência em que Arandir e Selminha fazem sexo, enquanto Dália, no cômodo ao lado, chega ao êxtase, é de gosto duvidoso. As cenas da reconstituição do enterro e o instante de Jorge Maya como a filha do delegado soam dispensáveis. A iluminação de Luis Paulo Nenén emprega bem tonalidades fortes, mas incorre em reiteração, a exemplo da fala de Arandir (“sangue”) ilustrada por meio da cor vermelha. O cenário de Nello Marrese é composto por placas móveis (com aberturas para as portas) onde os personagens penduram jornais (elementos fundamentais dentro da história), que, ao longo da encenação, tomam cada vez mais o chão, potencializando a atmosfera opressiva.
O rendimento do elenco é irregular. Claudio Lins se mostra correto como Arandir, sem imprimir visão mais marcante do personagem. Laila Garin desenha com precisão as transições emocionais de Selminha e comprova amplo domínio das ferramentas do musical. Gracindo Jr. tem atuação algo carregada como Aprígio, mas se destaca no solo musical. Thelmo Fernandes, como Amado Ribeiro, se aproxima da truculência de outros de seus personagens recentes. Yasmin Gomlevsky acentua mais que o necessário as motivações de Dália com intensidade febril. Claudio Tovar (responsável pelos figurinos) acerta a medida do cinismo característico do delegado Cunha. Jorge Maya busca a reação imediata da plateia ao interpretar Aruba de maneira histriônica. Janaína Azevedo reafirma sua presença vocal como dona Matilde. Gabriel Stauffer está bastante seguro na cena em que Werneck debocha de Arandir. Os demais atores – Pablo Áscoli, Juliane Bodini, Ricardo Souzedo e Juliana Marins – cumprem disciplinadamente pequenos papéis.