Entre o conformismo e a idealização
Rosana Stavis e Eliane Campelli em Artista de Fuga, montagem de Marcos Damaceno (Foto: Kelly Knevels)
O aspecto mais evidente em Artista de Fuga – nova montagem de Marcos Damaceno, que assina a dramaturgia resultante da adaptação do texto Como me Tornei um Artista de Fuga, de Guto Gevaerd – é a impotência diante da passagem do tempo, em especial no que se refere à inevitabilidade da morte. Várias frases, ditas pelo escritor em crise criativa interpretado pela atriz Rosana Stavis e dispostas ao longo da peça (como “O tempo cada vez menos anda sobrando”, “Escrever nada mais é do que ter tempo para dizer estou morrendo. Gostaria de ter mais tempo para entender a vida mais profundamente, mas estou morrendo”), realçam essa questão.
O texto, contudo, não se limita a esse lugar-comum. Também sinaliza uma ilusória fuga da morte. O mágico Harry Houdini é mencionado como o artista de fuga, provavelmente pela natureza de seu ofício, que desafia a lógica ao transmitir a sensação de tudo ser possível, de onipotência. É uma idealização, assim como a busca por garantias a partir da obediência rigorosa a normas de conduta tradicionais (“Se você se dedicar, a felicidade virá”, “Faça exercícios”) enumeradas como slogans em dado momento da peça.
Existe um inconformismo decorrente da constatação de que não há como controlar o tempo. O apego a um modelo de vida saudável tende a minimizar mazelas físicas, o que não significa que forneça certezas. A prática da escrita de um texto tem uma velocidade própria que não é determinada por completo pelo autor. Esse tempo pode ser modificado (devido a uma necessidade de antecipação imposta por urgências atuais, por exemplo), mas se trata de um procedimento artificial. O mesmo vale para a concepção de um trabalho artístico, que possui um tempo exigente de construção.
Em Artista de Fuga, as pressões para que o texto seja banalizado por meio de um enfoque superficial, ajustado aos dias que correm, reverberam dentro do escritor, mas ele preserva postura de resistência que talvez retarde a finalização do trabalho. Por outro lado, a dificuldade de desenvolver o texto sugere uma importância excessiva que o personagem confere à tarefa (e a si), como se, de certa maneira, o mundo girasse ao seu redor.
Todos esses pontos, porém, não são abordados de modo realista. A cenografia, de Marcos Damaceno e André Coelho, confina o escritor numa espécie de bunker ou caverna com palavras que poluem as paredes e projeções de imagens que podem remeter a um tempo distante, remoto, ancestral. Além disso, o diretor deixa a impressão de que os conflitos ocorrem na mente do escritor, em sua atormentada consciência, num pesadelo do qual não há como se libertar. A sensação é potencializada pelos dois personagens que não se mostram em cena como indivíduos, mas como figuras lineares, caricaturais, linha sublinhada nas atuações de Eliane Campelli e Paulo Alves.
A despersonalização é reforçada pelos figurinos, a cargo de Rosana Stavis, compostos por roupas sem formas muito definidas, e pela iluminação de Beto Bruel, que destaca partes dos rostos dos atores, priorizados em relação ao restante do corpo, que, nesse sentido, parece algo negado. Entretanto, o corpo está bastante presente na montagem – no caso de Rosana Stavis, por meio de partitura minimalista. A atriz materializa no corpo a confusão psíquica do escritor através de movimentação reduzida e precisa – como as mãos que tocam de leve a cabeça, mas mantendo o gesto propositadamente inconcluso, e do olhar perplexo. Há uma articulação temporal entre o estado mental do personagem e a fala, que, por surgir repleta de imagens, se torna concreta. Uma interpretação que confirma o refinamento de Rosana Stavis, a julgar por trabalhos anteriores (como Árvores Abatidas ou Para Luis Melo, apropriação de Marcos Damaceno do original de Thomas Bernhard), e desponta como o grande elemento de interesse em Artista de Fuga.
O crítico viajou a convite da organização do Festival de Curitiba
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br no dia 05/04/2016.