Em questão, a validade da trama
Savio Moll e Helena Varvaki em O Princípio de Arquimedes (Foto: Daniel Dias da Silva)
O Princípio de Arquimedes, texto do catalão Josep Maria Miró, lembra, em certa medida, Dúvida, do americano John Patrick Shanley. Na peça de Shanley, ambientada no Bronx da década de 1960, uma freira, Aloysius, acusa, de modo determinado, um padre, Brendan, de haver molestado um menino, enquanto que na de Miró a diretora de uma academia de natação, Ana, recebe a denúncia de que um dos professores, Rubens, teria se aproximado de forma inapropriada de um de seus alunos, uma criança. Ambos os textos falam de condenações instantâneas, assunto relevante atualmente.
Por meio de Aloysius, Shanley expos a cegueira da certeza, a dificuldade para assumir um estado de dúvida. Miró mostra a exasperação diante da dúvida e a estende para além do término da sessão. Não resolve a trama. É uma estratégia empregada com o intuito de sinalizar para o espectador que o fundamental não está na solução do mistério (há, pelo menos, outro na história: a morte do filho de Ana), e sim nas questões suscitadas a partir dele. Trata-se de um recurso conhecido, algo gasto, mesmo que ocasionalmente praticado de maneira desestabilizadora – por exemplo, em Caché (2005), filme de Michael Haneke.
Mas, apesar do final inconcluso, talvez Miró não seja tão imparcial em relação à problemática que apresenta. O autor dá a impressão de que deseja chamar atenção para o afeto na conexão entre professor-aluno, elemento essencial para o aprendizado, mas tensionado nos dias de hoje devido, de um lado, à preocupação diante do lugar de extrema fragilidade das crianças em situações abusivas e, de outro, a uma onda conservadora num momento do mundo menos libertário que os anos 1970. Essa “mensagem” se tornaria mais evidente se a peça enveredasse por um dos dois desfechos: a inocência de Rubens. Em contrapartida, se o personagem se revelasse culpado, O Princípio de Arquimedes ficaria quase limitado à função de alertar para um grave risco. Nesse caso, a importância moral, ética, se sobreporia à consistência artística.
A elucidação da trama – ou a adesão, desde o começo, a um dos pontos de vista da história – geraria, a princípio, uma diminuição nas possibilidades de interpretação do texto, uma impossibilidade de relativizar os fatos. É o que Miró, interessado em oferecer ao espectador uma abertura de leitura, não queria. Mas a adoção de uma abordagem mais concreta, até definitiva no que se refere ao episódio em si, não resultaria necessariamente reducionista. Poderia, ao contrário, levar a uma verticalização da reflexão proposta.
Diretor da montagem, que cumpriu temporada no Sesc Tijuca e acabou de estrear nova no Centro Cultural dos Correios, e responsável pela tradução, Daniel Dias da Silva procura manter fidelidade ao enigma lançado pelo texto e valoriza percepções distintas em relação à história ao fornecer ao espectador perspectivas diversas por meio de uma inversão da disposição cenográfica do vestiário da academia (cenário de Cláudio Bittencourt). Em dado instante, o público assiste à cena a partir de um ângulo diferente, alteração propiciada pela mudança de posição de uma suposta câmera.
Através dessa artimanha, o diretor (em sintonia com o dramaturgo) sugere que um acontecimento pode ganhar percepções variadas, de acordo com a ótica do observador. A influência cinematográfica vem à tona ainda na estrutura do texto. Miró investe no procedimento da montagem ao suprimir trechos do enredo para depois voltar e preenchê-los. Vale mencionar que O Princípio de Arquimedes rendeu uma recente adaptação para o cinema, intitulada Aos Teus Olhos, a cargo de Carolina Jabor.
A cena não soa tão contundente como a história, de início, faria prever – observação que não deve ser considerada como demérito. Há um registro em tom menor que atravessa o espetáculo, tanto no que diz respeito à iluminação de Wallace Furtado, que destaca passagens mais intimistas, quanto aos trabalhos dos atores. A tensão concentrada de Ana, que se manifesta na pressão que exerce sobre Rubens para obter respostas e no convívio ríspido com Heitor, o outro professor, é realçada na atuação contida de Helena Varvaki. Cirillo Luna projeta os mecanismos de defesa e o nervosismo crescente de Rubens diante da denúncia. Gustavo Wabner dá vazão à postura ambígua de Heitor. Savio Moll, como David, o pai que faz a denúncia contra Rubens, estabelece boa contracena com a personagem de Varvaki na hora do embate.
O Princípio de Arquimedes possui um potencial de polêmica que permanece preservado nessa montagem.