Ecos de uma guerra íntima
A companhia Amok Teatro retoma o universo da guerra, agora em adaptação do romance Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, atualmente em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A dramaturgia oscila entre o dramático e o épico, entre o percurso individual e a panorâmica de um continente em agonia, entre a vivência e a narração dos acontecimentos. Quando discorrem sobre suas próprias experiências, os personagens assumem tom emocional, diferentemente dos momentos em que abordam histórias com as quais não estão comprometidos em primeira instância.
Talvez a balança penda para o dramático, na medida em que, mais do que descrever o contexto devastador da África, Mia Couto destaca a reverberação particular da guerra em indivíduos assombrados por fantasmas (do pai, do “patrão colonial”, do estuprador). A necessidade de se distanciar da terra de origem representa o afastamento das raízes afetivas. Kindzu afirma, em dado instante de sua jornada, que deseja encontrar um continente dentro da África. Os personagens externam urgência de resgatar elos com os antepassados. Mas não “apenas” com eles – também com os filhos dos quais tiveram que se separar. O maior temor parece residir na possibilidade da guerra tornar impessoal uma geografia até então familiar.
Diretores da Amok Teatro e de Os Cadernos de Kindzu, Ana Teixeira e Stéphane Brodt procuram materializar o impalpável – a atmosfera de um mundo – no palco, principalmente por meio da música, a cargo dos atores, que traz à tona cantigas, propõe sonoplastias e fornece acompanhamento que realça o clima das cenas. A música (seu emprego constante é questionável) sugere a ligação com um passado que segue ecoando no presente, foco temático dessa nova montagem e um importante elemento do trabalho praticado pela companhia, a julgar pelo aproveitamento de formas teatrais, como os bonecos, as máscaras – ambos evocados de modo bastante simples – e as sombras. A valorização da teatralidade fica evidente nas soluções, mesmo que não exatamente originais, escolhidas para as passagens do estupro e do parto.
Ana Teixeira e Stéphane Brodt investem numa cena rústica, austera, destituída de qualquer exuberância, que não visa a deslumbrar as retinas dos espectadores, impressão decorrente das concepções do cenário e dos figurinos (os dois quesitos assinados pelos diretores). A iluminação de Renato Machado revela sintonia com essa linha ao priorizar a neutralidade em detrimento de cores mais intensas. Já o registro interpretativo do elenco (Graciana Valladares, Gustavo Damasceno, Luciana Lopes, Sergio Ricardo Loureiro, Thiago Catarino, Vanessa Dias e Stéphane Brodt) contrasta com a contenção imperante na cena. Os atores, munidos de sotaques, estampam os estados emocionais em suas máscaras faciais. Alguns dão vazão a composições muito carregadas (em especial, as atrizes que fazem as personagens idosas), provavelmente na intenção de caminhar em sentido contrário ao do naturalismo banal.
Eventuais restrições à parte, Os Cadernos de Kindzu, trabalho relacionado a espetáculos anteriores da Amok, tanto a Trilogia da Guerra (O Dragão, Kabul, Histórias de Família) quanto Salina, tragédia contemporânea mergulhada na África, confirma o rigor que marca as encenações da companhia.