Dramaturgia frágil, atriz sólida
Dan Stulbach e Irene Ravache em Meu Deus!, em cartaz no Teatro dos Quatro (Foto: João Caldas)
A estrutura dramatúrgica de Meu Deus!, peça da israelense Anat Gov, pode ser notada pelo público, tendo em vista que o texto evidencia transições bem sinalizadas. De início, a autora aposta no humor a partir de uma situação nonsense: uma psicóloga, Ana, recebe Deus em seu consultório e, obviamente, não acredita. Há uma fase de convencimento, na qual Deus expõe fatos da vida dela que ninguém teria acesso direto. Daí em diante, a dramaturga passa a investir menos na comédia ao fazer com que os personagens travem uma relação analítica, na qual Deus revela sua vulnerabilidade e a psicóloga procura manter o controle, mesmo ameaçada por figura de poder tão absoluto. Em determinado momento, Anat Gov frisa uma mensagem referente à crise de valores no mundo contemporâneo.
Se como comédia a peça não prima exatamente pela originalidade ao buscar divertir a plateia a partir das perguntas tradicionais da psicóloga e das respostas inusitadas de Deus, o resultado se torna ainda menos promissor quando a autora tenta adensar a discussão. Além disso, Anat Gov não foi suficientemente cuidadosa no desenvolvimento da situação-base: soa estranho que a psicóloga demonstre tanta intimidade com o universo bíblico nos embates com Deus; e que a funcionária chamada para tomar conta do filho autista da psicóloga não o impeça de interromper com alguma constância a consulta. Talvez o filho, inclusive, pudesse ser mencionado, não necessariamente mostrado.
Em todo caso, Meu Deus! também desponta como veículo para atores. Este é o aspecto mais interessante da montagem em cartaz no Teatro dos Quatro graças à interpretação de Irene Ravache, uma atriz que se coloca admiravelmente dentro da circunstância proposta, que reage à escuta como se estivesse ouvindo pela primeira vez, sintonizada com o instante imediato da cena. Apresenta, assim, uma atuação repleta de frescor, sem vícios. Dan Stulbach caminha em sentido contrário ao registro realista de Irene Ravache, realçando a composição de Deus por meio de gestos e tom de voz que visam ao humor. Pedro Carvalho marca presença como o filho autista.
Elias Andreato não imprime uma assinatura mais perceptível na condução da montagem. Dirige sem ultrapassar o limite da correção, um padrão de profissionalismo reforçado pelo cenário de Antonio Ferreira Junior, os figurinos de Fause Haten (elegante para a psicóloga, de tonalidade neutra para Deus), a iluminação discreta de Wagner Freire e a trilha sonora de Jonatan Harold. Apesar da dramaturgia frágil, Meu Deus! tem no trabalho de Irene Ravache uma justificativa para ir ao teatro.