Diálogo destituído de reverência com Molière
Patricia Callai e Yasmin Gomlevsky em Um Tartufo (Foto: Dalton Valério)
O título da encenação dirigida por Bruce Gomlevsky, em cartaz até o próximo domingo no Teatro Poeirinha, evidencia o desejo de afastamento em relação a uma versão oficial da peça de Molière. Sinaliza uma apropriação, uma leitura personalizada, distante da submissão ao autor. As operações realizadas sobre o texto original são marcantes: as palavras foram suprimidas e os personagens se expressam por meio de objetos imaginários e de fisicalidade expansiva que remete diretamente ao cinema mudo.
Já houve, inclusive, um filme mudo, assinado por F.W. Murnau, em 1925, a partir de O Tartufo. Murnau lançou propostas sobre a peça de Molière – a figura de Tartufo é materializada numa governanta mal intencionada, que não hesita em manipular o patrão para que este deixe sua herança para ela, mas se depara com o neto dele, um ator que, com o intuito de desmascarar a impostora, exibe um filme sobre a história de Tartufo. Por meio da metalinguagem, Murnau mostra o cinema como instrumento de revelação da verdade, como fez William Shakespeare, em Hamlet, ao expor a determinação do personagem-título em denunciar, através do teatro, os objetivos nefastos do tio.
Gomlevsky também investe numa articulação entre esse exemplar do classicismo francês do século XVII e a contemporaneidade ao frisar Tartufo como um déspota que impõe, de maneira cruel, suas vontades. O plano é viabilizado por Orgonte, que obriga a própria família a seguir à risca os caprichos do falso religioso Tartufo, finalmente desmoralizado, na peça, por Dorina e Elmira, empregada e esposa de Orgonte. A preocupação em suscitar no espectador conjugações com o aqui/agora – cabe lembrar que O Tartufo rendeu pelo menos uma encenação voltada para o diálogo entre o texto e acontecimentos do seu tempo, a de Ariane Mnouchkine, com o Théâtre du Soleil, na década de 1990 – imprime, no caso da montagem brasileira, um peso dramático à obra de Molière.
Uma contundência característica dos espetáculos da Cia. Teatro Esplendor, reforçada pela música contrastante de Borut Krzisnik. A montagem de Um Tartufo não perde de vista a relevância do texto para a companhia. Apesar de suprimi-lo (no que diz respeito à esfera verbal), estabelece com ele uma conversa – destituída de reverência. Além disso, ao invés de enveredar por uma dramaturgia recente, Gomlevsky, dessa vez, busca inspiração em peça de passado longínquo, ainda que apostando numa abordagem próxima dos dias de hoje. Outra transição: opta, de modo mais radical, por uma cena estilizada, divorciada do registro realista.
A atmosfera decadente, arruinada, da casa de Orgonte é realçada por tapetes gastos, puídos, elementos de destaque da cenografia de Bel Lobo e Bruce Gomlevsky, por uma iluminação densa e algo opaca de Elisa Tandeta e por expressivas sobreposições nos figurinos de Maria Duarte e Márcia Pitanga. O elenco – Yasmin Gomlevsky, Gustavo Damasceno, Thiago Guerrante, Ricardo Lopes, Patricia Callai, Nuaj Del Fiol, Felipe de Barros e Gustavo Luz –, principalmente os dois primeiros, demonstra integração com a linguagem do espetáculo e habilidade na execução de composições físicas exteriorizadas com precisão.
A montagem de Um Tartufo representa uma conciliação entre o elo com o texto e a inquietação no tratamento deste, equilíbrio que joga novas luzes sobre o trabalho de Bruce Gomlevsky como encenador.